por Marcelo Firpo

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Santiago

O texto que segue foi escrito quando o meu filho nasceu, há exatamente um ano e três dias. Como o site em que ele estava publicado saiu do ar, achei por bem colocar aqui. A princípio ia postar na extended entry, mas depois achei melhor deixar aqui fora mesmo. Ele adora a rua.


SANTIAGO

[ 25/03/2004 ]

Por onde se começa um relato desses? Pela manhã do
dia, quando o simples fato de se acordar mais cedo do
que de costume para se fazer um exame aparentemente
desencadeia um processo de parto? Pelo meio-dia,
quando, ao chegar em casa, ouço simplesmente a frase
"a bolsa rompeu" e me sinto num filme? Pela ida para o
hospital, com todas as coisas demonstrando uma nitidez
quase insuportável? Ou talvez pelo nascimento
propriamente dito, a mão da médica buscando alguma
coisa dentro da barriga aberta da Giselle e saindo de
lá com essa coisa, vermelha, enrugada, cheia de cabelo
e estranhamente familiar? Não sei. Acho melhor começar
do começo e ir avançando. Não que faça mais sentido,
mas por ser mais fácil mesmo.

De manhã. Em vez de acordar e ir pro meu trabalho,
deixando a Giselle e seu barrigão dormindo como tenho
feito nas últimas semanas, faço força para acordá-la,
obedecendo a um pedido feito na noite anterior. Ela
tem um exame marcado para as 9 horas, não deu pra
marcar mais tarde. Mais dia menos dia essa criança
nasce, então é melhor fazer logo.

A duríssimas penas ela carrega seu barrigão até o
banheiro, cozinha, roupeiro, sempre comigo empurrando
atrás, vou dar uma carona. Rua. Ao atravessar, ela
começa a sentir uma série de contrações. Será que é
hoje? Quarta, 3 de março, aniversário do Mojo, bom
augúrio. Eu tinha sonhado que ia ser ontem.

Deixo-a na frente do laboratório com as recomendações
de sempre, "qualquer coisa, liga."

No trabalho, tenho uns cinco problemas pra resolver,
mas não consigo entrar em nenhum deles. É como se eu
soubesse que ia ser perda de tempo, que o que quer que
eu fosse começar agora não ia terminar mesmo.

Ela liga: "Acho que é hoje mesmo, viu?" As duas mães,
minha e dela, já foram chamadas, fico tranqüilo,
organizando coisas. Chego em casa depois da uma e a
primeira coisa que ouço ao abrir a porta é "A bolsa
estourou." Uma suave irrealidade começa a tomar conta
das coisas. Munidos de toalhas, descemos e vamos até o
consultório da médica, e de lá pro hospital.

Tinha uma reunião às 14:30 e outra às 15:00. Depois de
deixar Giselle e mãe no hospital, dou uma última
passada no trabalho pra passar a bola pra alguém e
começo a comunicar a esmo que o Santiago está pra
nascer. As pessoas esperam que eu fique um pouco mais
nervoso do que eu estou. Estou apressado, mas calmo,
curtindo a situação toda. É legal chegar pra alguém e
dizer: "Olha, preciso que tu me substitua nessa
reunião, meu filho está nascendo neste exato momento,
essas crianças, sabe como é..."

Na volta pro hospital é que começa o estranho
fenômeno: uma sensação de que tudo parece mais vivo,
mais nítido, mais forte. Uma jamanta carregada de
carros cruza na minha frente em plena 24 de Outubro e
eu perco vários segundos olhando maravilhado para a
brutalidade daquilo, caçamba, cabine, pneus,
carroceria, carros, correntes, parafusos, nunca olhei
pra uma jamanta desse jeito. É como se fizesse sol
depois de meses e meses de dias nublados, as cores
gritam, nada parece fugir à minha percepção.

Hospital, o mesmo em que eu nasci. Depois de
esperarmos em vão durante 3 horas por uma série de
contrações fortes o bastante para causar uma
dilatação, a médica decide por uma cesariana. Ficar
mais de 12 horas com a bolsa rompida é perigoso, por
causa do risco de infecções.

Giselle fica um pouco nervosa com a idéia de cirurgia
e anestesia, ela não tem muitas no currículo. Digo que
já fiz várias e acho até divertido, mas ela não se
convence muito. Pelo menos vou poder ficar do lado
dela na hora, falando besteira.

Rapidamente aparecem o anestesista e o resto da
equipe, e vamos para a sala. Me sinto bem com o
avental, mas a máscara me incomoda um pouco. Comento
que começo a entender o porquê de usarem a palavra
"parto" para coisas complicadas: já são 8 da noite.

À medida em que o processo avança, uma certa
introspecção vai tomando conta de mim. Na verdade, sou
dois: na superfície, um de nós conversa com a Giselle
e responde às brincadeiras sobre Inter e Grêmio do
anestesista; mais fundo, o outro espera, consciente de
que a minha vida está para passar por um momento
extremo, uma culminância.

Tem uma cortina protegendo a incisão do olhar da
Giselle. Digo pra equipe que quero ver o bebê saindo
da barriga e o anestesista brinca que se tiver que
segurar pai desmaiando vai cobrar mais caro. Desmaiar?
Perder um momento desses? Sem chance, tenho certeza
disso quando levanto a cabeça para espiar do outro
lado da cortina, bem a tempo de ver a médica buscar
algo lá dentro da barriga e trazer para fora.

Cabelos. A primeira coisa que eu vejo é uma cabeça
cheia de cabelos. Depois penso em vermelho. A criança
está toda coberta por uma golesma esbranquiçada, mas é
possível notar que por baixo a pele é absurdamente
vermelha. Ele parece muito, muito brabo, quase peço
pra colocarem de volta no lugar. Aí eu finalmente
enxergo o rosto: olhos bem fechados, boca aberta num
choro que começa a chegar aos meus ouvidos, um nariz
minúsculo e grandes bochechas.

Eles levam o bebê para a sala ao lado, eu vou junto,
pesam e medem, depois me dão para segurar. Tenho
consciência de que esta é a primeira vez que eu faço
isso. Pegar o meu filho no colo. Acho que é neste
momento que cai de vez a ficha: sou o pai desse guri.

Com o Santiago no colo, volto pra sala de parto, onde
Giselle chora na mesa de cirurgia. Coloco ele com todo
o cuidado na frente do rosto dela. Não tenho como
descrever essa cena sem ser muito piegas, então
prefiro pular. Me limito a dizer que ela conversa com
ele, e eu penso que todos os sacrifícios que ela fez
nos últimos meses finalmente fazem sentido. Toma que o
filho é nosso.

Depois disso eu levo a criança, ainda no meu colo, até
a vitrine da maternidade, onde duas famílias aguardam.
Eu achei que o grande momento tinha sido o nascimento,
mas chegar na frente do vidro e ver todos explodindo
de alegria também é muito forte. Olho nos olhos de
cada um agora, mostrando o Santiago. Me demoro um
pouco mais na minha mãe, o nome da criança é uma
homenagem a uma das melhores pessoas que eu já conheci
nessa vida, pai dela, meu avô. Onde estão as dúvidas
que senti nos últimos meses? Onde está a insegurança,
o medo de simplesmente não estar preparado pra ser
pai? Converso com meu filho, sou o pai dele agora.
Coloco o bebê sobre um bercinho, à vista de todos, e é
então que começam os problemas: o pediatra me diz que
a criança está fazendo força demais para respirar, e
que se continuar assim vai ter que levar para o CTI,
mas que ele não quer isso, prefere esperar um pouco.

Só aí é que me dou conta de que o final de cada
expiração, muito curta, vem acompanhado de um pequeno
gemido intermitente, doído. Ele não chora, talvez até
porque todas as forças estejam concentradas nessa
respiração sofrida, brigada. O médico aspira as
secreções da boca e nariz, tentando desobstruir as
vias respiratórias, mas não adianta. Calculo que ele
respire umas 70 vezes por minuto, sempre gemendo. Fico
ali com ele, sofrendo junto, puxando o ar junto,
torcendo para que a situação se reverta nos próximos
minutos, que de uma hora pra outra ele consiga
respirar normalmente e possa ser levado para perto da
mãe, mas isso não acontece. Depois de um período de
tempo que calculo em torno de 40 minutos, o médico me
diz que o melhor é o Santiago passar um tempinho no
CTI. Fico um pouco triste: queria muito que ele fosse
para perto da mãe, sentisse de novo seu cheiro, as
batidas do seu coração, seu calor, e dessa forma se
acalmassem ambos. Mas não.

No CTI, me informam rapidamente das regrinhas do lugar
e me avisam que posso entrar e sair a hora que quiser.
Na verdade, sou a única pessoa da família que pode
fazer isso, já que a mãe não consegue nem sentar, com
a barriga toda costurada. A decisão de passar a noite
por lá vem ao natural.

A noite é uma sucessão de idas e vindas, da salinha de
espera com um sofá minúsculo de 2 lugares e guardas de
madeira estrategicamente colocadas para que não se
consiga deitar ao CTI propriamente dito, e vice-versa.

No começo toco bastante nele, converso e me comovo com
a mais insignificante expressão facial, mas ao longo
da noite me dou conta que isso o deixa mais agitado,
então procuro me conter. Ele está num berço, embaixo
de uma estufa, com soro e com a cabeça dentro de uma
campânula transparente, que oferece uma concentração
maior de oxigênio, 40%, do que a que normalmente
respiramos, 21%. Parece um astronautinha.

Nas paredes do corredor do CTI, quadrinhos
emoldurados, presente de pais agradecidos, contam a
história de crianças que ficaram vários meses naquele
lugar. Geralmente são compostos de uma foto do
recém-nascido todo erradinho, magro e cheio de tubos e
de outra, com o bebê em casa, sadio e sorridente. Os
textos são escritos pelos pais, muitas vezes simulando
a narração da própria criança: "Oi, meu nome é Tomás,
nasci com 1600g, tive tal e tal complicação, passei 6
meses aqui, mas agora estou bem, em casa, com 4200g,
graças ao empenho das enfermeiras etc etc etc". Leio
todos eles, e uns dois ou três conseguem me atingir
como uma voadora na pleura. Um deles começa com uma
citação do Churchill: "Nunca, nunca, nunca se renda."

Quando me dou conta, o bar do hospital já fechou e
tudo o que eu tenho para comer são duas trufas de
chocolate. Tento dormir, não consigo, volto mais
algumas vezes para o CTI e lá pelas três da manhã o
cansaço me vence. São quatro e meia quando me acordo,
depois disso não durmo mais.

Durante a noite, seguro a mãozinha dele várias vezes,
sentindo o apertão instantâneo dos dedinhos que se
fecham ao redor do meu dedo. Sei que é um espasmo
natural dos bebês, sei que não é consciente, sei que
ele seguraria com a mesma urgência o dedo de qualquer
pessoa nestas condições, do pior criminoso do mundo
até, mas não é ele que está aqui, sou eu.

De manhã Santiago tem uma ligeira piora, eles colocam
um respiradorzinho direto no nariz, e eu sou
aconselhado a ir para casa, dar uma descansada.
Corcoveio um pouco mas acabo indo, e ao sair do
hospital percebo outro fenômeno interessante: depois
de uma noite em claro no CTI, ouvindo o choro e os
gemidos do meu filho e de vários outros bebês, começo
a ouvi-los por toda a parte. Abro uma torneira e o
rangido se assemelha a bebê resmungando. Um carro
freia ao longe e o som se assemelha muito a um começo
de choro. Uma porta rangendo lembra um gemido. É como
se os choros e ruídos de bebê já estivessem embutidos
em todos os sons do dia-a-dia, mas só agora, com os
ouvidos devidamente afinados, eu os percebesse.

Durmo.

Muito.

No fim da tarde volto ao hospital e Giselle finalmente
consegue sentar numa cadeira de rodas. Tudo o que ela
quer é visitar o filho. Desde o nascimento, no dia
anterior, ela não passou mais do que dois minutos
junto dele, e é tocante vê-los agora. Ele já está numa
incubadora, ela abre a portinha, acarinha a sua cabeça
e fala coisas simples e cheias de carinho. Ela repete
várias vezes, olhos cheios d´água, a frase "Como ele é
querido!", mas na verdade é como se dissesse "como ele
é forte, como ele é corajoso, como ele luta pra
respirar, pra ficar com a gente, pra ir pra nossa
casa". Comovo.

Os dias vão passando, Santiago vai melhorando, a
concentração de oxigênio fornecida para ele vai se
aproximando dos 21%. Ele fica mais ativo, resmunga
mais, arranca o soro da mão, tenta puxar a sonda da
boca. Meu guri.

Cerca de uma semana depois do parto ele ganha alta e
aí começa uma nova história, fraldas, mamadas no meio
da noite, colos para arrotar, eventuais engasgos,
preocupações-de-pais-de-primeira-viagem-que-um-dia
vão-ser-motivo-de-boas-risadas-mas-certamente-não
agora e pequenas alegrias.

Quando ele sorri, por exemplo, eu me desmonto, mesmo
sabendo que este ainda não é um sorriso consciente,
social, que é mais um espasmo, que tem a mesma
natureza de um peido ou de um arroto. Talvez seja
justamente isso, a aleatoriedade da coisa toda, o
pequeno milagre do teu filho sorrir, não
necessariamente para ti, mas ao alcance dos teus
olhos, que seja o mais bonito de tudo. A vida é
caótica. Um ano atrás a última coisa que eu queria era
ser pai; hoje me sinto de certa forma agraciado, quase
salvo, por esta oportunidade.

Uma última lembrança, ainda da época em que mãe e
filho estavam no hospital e eu me acordava de
madrugada para ir vê-los: são cinco horas da manhã,
dirijo pela 24 e ouço a Ipanema. O refrão de um rap
pergunta: "what´s love?"

Por alguns instantes eu acho que consigo responder.


Marcelo Firpo

08/03/2005 16:25 | Comentários (12) | TrackBack (0)