por Marcelo Firpo

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Direto do sótão

Perdi quase todos os meus textos, porque a página em que coloquei eles se reuniu ao grande vazio. Um que outro se salvou.

Este que segue é um continho, escrito ali por 2001. Léa foi a amiga que me incentivou a terminá-lo.


VALE TUDO

Marcelo Firpo

Para Léa


Sou o mais corajoso de uma longa dinastia de lutadores. O registro mais antigo que temos da relação da nossa família com as lutas é dos anos 20.

Tínhamos um tio-tataravô que lutava boxe, mas como não batia muito bem da cabeça, foi expulso da liga por insistir em chutar seus oponentes quando já estavam caídos. Só que esse é mais um dado folclórico, que contamos para as crianças nos jantares de Natal para distraí-las um pouco.

Penso nele enquanto faço meus alongamentos preliminares.

A nossa dinastia começou mesmo com o meu bisavô, Terêncio Santiago, que começou no judô e depois foi se especializando em diferentes formas de combate. Ele ainda não praticava o que a nossa família chama de A Luta, mas o seu ímpeto é que inspirou o meu avô, Romão Santiago, a criá-la.

A Luta é o resultado da paixão de uma vida inteira. Um sistema de lutas maior que a soma de todas as artes marciais do planeta, a mais efetiva forma de combate e também a mais fluida e livre, sempre se aperfeiçoando, sem dogmas ou restrições de nenhum tipo. Frente a ela, todas as outras parecem jogos infantis. Não que não as respeitemos. O fato é que nós somos inegavelmente melhores.

Alongo cuidadosamente o meu pescoço, para os lados, para trás, para a
frente, orelhas nos ombros.

Há mais de duas décadas confirmamos na prática esta afirmação,
colocando-nos à prova em competições de todos os tipos, com regras, sem regras e com regras ocultas da platéia. Não pode socar com a mão fechada? Não tem problema. Não pode socar? Não pode chutar? Nada de chaves? Tudo bem. A qualquer exigência nos adaptamos, sem reclamar, porque temos confiança em nossa arte e nas suas infinitas possibilidades. Nunca perdi uma competição oficial, nem empatei.

Estalo todas as juntas dos dedos das mãos e também dos pés. Depois
coloco com cuidado as ataduras, muito concentrado.

Desde crianças, os Santiagos são treinados nos mistérios da Luta. Já
nos primeiros meses, quem sabe nos primeiros dias de vida do bebê, a
família toda aguarda ansiosa pelos sinais de que mais um vencedor veio ao mundo. Como estão os reflexos? Ele é medroso? Chora muito? É bravo? Uma dieta altamente balanceada, concebida pelo saudoso tio-avô Tibúrcio, prepara os nossos corpos para as duras exigências dos anos de treinamento. Tudo gira em torno da técnica e da preparação. Estudos, vida sexual e afetiva, nada precede em importância a formação dos Lutadores Santiago.

Mas não pense que somos autoritários ou draconianos. Bom, draconianos talvez. O fato é que até hoje ninguém da nossa família renunciou a esta sina gloriosa. É claro que alguns Santiagos são melhores que outros, encarnam com mais firmeza os preceitos da Luta. Mas todos, de um jeito ou de outro estão relacionados a ela. Os mais fracos dentre nós são aqueles que não se tornaram lutadores profissionais, acomodando-se com a rotina de dar aula em suas próprias academias. Não os desprezamos. Ao seu modo, estão fazendo o seu caminho dentro da nossa arte. Por outro lado, alguns de nós são verdadeiros exemplos de dedicação e superação para toda a família. Penso em
tia Amélia, que aos setenta e dois anos acaba de unificar todos os
títulos mundiais de vale tudo feminino, categoria sênior.

Meu pensamento vaga por toda a nossa vasta tradição: oceanos de chaves de braços, pernas, pés e rins, estrangulamentos dos mais diversos tipos, gravatas, gravatas invertidas, mata-leões, sufocamentos com a ajuda do quimono, ezequiéis, pontos de pressão, chutes, socos, cotoveladas, joelhadas, pisões, cabeçadas
e pescoções. Somos armas vivas.

Pensamos em lutas 25 horas por dia. Não usamos nenhum adereço que possa ser usado contra nós mesmos pelo Eventual Adversário. Nada de correntes no pescoço, brincos na orelha ou cabelos compridos, mesmo as mulheres. Nossas crianças vão para o jardim de infância com protetores bucais no bolso da calça.

Me deito no chão de barriga para cima e jogo os pés por sobre minha
cabeça, alongando os lombares e a cervical. O contato com o chão me faz sentir toda a energia tensa da platéia que me espera lá fora. Sinto um frio na barriga, mas é normal. Seria preocupante é se não sentisse.

Sou o mais corajoso de todos eles. Enfrentei adversários em todos os
continentes, sob todas as condições: de lutas em hotéis de luxo
transmitidas pela TV a cabo a chuvas de latas de cerveja em ringues vagabundos montados em ginásios interioranos. Venci a tudo e a todos, menos à minha própria natureza voraz, sempre querendo ir além, não se saciando com aquilo tudo, todo aquele sangue no ringue, dentes quebrados, fraturas expostas dos valentões que insistiam em não bater três vezes no tatame depois da chave encaixada, retinas deslocadas, hematomas, nocautes, cortes em geral, falência de órgãos, pedaços de rim eliminados na urina após o combate.

Alongo minhas pernas como se tivesse todo o tempo do mundo. A
expectativa me faz sentir frio, é bom não facilitar.

A Luta nos fez ricos e, mais que isso, unidos. Somos uma força da
natureza,um exército genético que atravessa as décadas com a única missão de se aprimorar, de se tornar ainda mais forte e evolutivamente eficiente. Escolhemos nossas mulheres pelo tamanho das ancas e nossas primas e irmãs escolhem seus homens pelos maxilares. Temos muitos filhos.

Fico saltitando, distribuo golpes no ar, só para esquentar e espantar a tensão. Alguns chutes também. O que eu mais gosto em tudo isso? Não são as glórias e vitórias, certamente não é o dinheiro, não é a chance de esmurrar um sujeito qualquer até o limite e ser aplaudido por isso ao invés de ser preso. Não. O que eu gosto é a coreografia, os passos cada vez mais desesperados, a marcação feita de sangue, o ritmo dos gritos e palmas da platéia. A dança, é disso que eu mais gosto.

Exercícios de respiração, quase na hora. Encho os pulmões e solto o ar
devagarinho. Sinto a sua urgência em querer sair de dentro de mim,
derrubando o que houver pela frente. De alguma forma isso me inspira.

Penso mais uma vez na família e em como o apoio deles foi importante para que eu chegasse até aqui. Não sei se seria tão corajoso não fosse por eles. Eles também me aguardam lá fora.

Combino os exercícios de respiração com algumas posturas básicas. O
objetivo é relaxar, mas tem uns 300 cachorros furiosos avançando pra fora de mim. É hora.

Saio do meu camarim em transe. Não adianta mais pensar no que fazer ou em como fazer. Agora é apenas avançar, não é possível voltar, de jeito nenhum. Estou ansioso, como na minha primeira luta. O meus companheiros me cercam e avançamos, trocando palavras de incentivo, mas cada um na sua própria viagem, mais sendo levados que caminhando.

E de repente cá estamos, prestes a entrar. De onde estou, posso ver uma boa parte da platéia. Ao final do espetáculo quero ver todos de pé, urrando de satisfação. É uma promessa que me faço.

Sou o mais corajoso de uma longa dinastia de lutadores. Minha família está toda lá, pai, mãe, tios, tias, primos, primas e avós sorridentes na primeira fila, todos muito elegantes, apesar da falta de gravata nos homens. Estou tão ansioso que me prendo em detalhes, notando as orelhas ligeiramente deformadas em todos. Serão os anos de treinos no tatame ou já virou uma característica genética?

Avanço para as luzes, e quando se dão conta da nossa chegada, todos
aplaudem.

Sou o mais corajoso de uma longa dinastia de lutadores. Estou provando isso agora, ao seguir o meu caminho.

É só nisso que penso quando minha sapatilha de ponta toca o palco e as
primeiras notas do Lago dos Cisnes ecoam pelo teatro.

06/04/2005 13:58 | Comentários (3) | TrackBack (0)