por Marcelo Firpo

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Wish

Santiago foi dormir na vovó hoje, acabei de levar. Na volta, estacionando o carro em frente ao edifício, começou a tocar "Wish you were here", de todo mundo sabe quem, no rádio, porque - voz de locutorzão, meio Bira Valdez - "Sábado é noite de rock na FM Cultura".

Fiquei ali, sentadinho, ouvindo a música inteira e sentindo uma certa melancolia por não ser capaz de sentir o coração estraçalhado ao ouvir uma música dessas, de não ser capaz de lembrar de todos os sonhos da minha geração, das nossas conquistas e descaminhos, dos ideais de revolução, do amor livre, do sleeping bag etc etc etc. Em outras palavras, uma nostalgia de não ter sido um hippie.

Conheci boas pessoas que ficariam com o coração em frangalhos ouvindo essa música. O Nando, por exemplo. O Nando era o namorado da mãe de um amigo meu, quando eu ainda morava no beco e tinha uns dez anos. Fisicamente, ele era um ruivo com cara de americano de filme, usava um bigode que lhe dava uma vaga aparência de caubói, mas a grande referência era mesmo Woodstock. Não, não imaginem um sujeito de cabelo comprido e bata indiana, não é por aí. Ele era aquele tipo de cara que viveu intensamente - leia-se que tinha a idade certa na época certa - os anos 60 e, depois, mesmo vendo a coisa degringolar nos 70 e 80, manteve o flower power como uma referência de vida, mas não como uma camisa de força.

O Nando não trabalhava, não imagino se ele colaborava nas despesas da casa ou não, nem é da nossa conta. A coisa mais parecida que ele tinha com um trabalho era uma mesa cativa no bar Dante, que chamava carinhosamente de barbante, duas quadras João Manoel abaixo. Pelo que eu sei, ele passava os dias lá, a ponto de ter conseguido o patrocínio do dono da birosca pra correr um rally certa vez.

Nando se orgulhava que o enteado gostasse de Pink Floyd, Led Zeppelin e essas tranqueiras todas, mas gostava mesmo era de Captain Beefheart. Volta e meia reunia uns amigos músicos no apartamento e ficava ouvindo os caras tocarem a noite toda, enquanto a mãe do meu amigo tentava dormir, ela era professora de História. Reza a lenda que "Asa Morena" teria sido composta numa dessas noitadas. A mãe do meu amigo vivia dizendo que o Nando era um adolescente de quarenta anos, mas era visível que era exatamente isso o que mais gostava nele, ainda mais depois de ter sido casada com um economista por muitos e muitos anos.

Eu e o Nando tínhamos uma brincadeira. Quando me encontrava com ele no meio da rua, ele vindo por um lado, eu por outro, brincávamos de sacar armas imaginárias, depois de um sibilo mútuo que começava com um ssssssssssss e terminava na palavra "saque". Quer dizer, as minhas armas eram sempre imaginárias, mas teve uma ou duas vezes, à luz do dia, na entrada do beco, que ele realmente sacou - e guardou rapidamente depois - uma bela pistolinha cromada. Ele tinha várias armas, gostava de mostrar.

Era um cara que não via o menor problema em ficar debatendo sobre política, música, cinema e história com uns pirralhos de merda, por horas a fio. Às vezes eu tinha a impressão que nós éramos os melhores amigos dele. Várias vezes nos dava provas das cachaças artesanais que fazia sei-lá-onde.

Um dia a mãe do meu amigo se separou dele e o cara sumiu no mundo. Histórias entre a turma davam conta de que tinha viajado pros Andes, que estava atravessando os EUA de carona ou que tinha entrado pra guerrilha. Ficamos até um pouco putos com a mãe do nosso amigo por ter nos privado da companhia do Nando, por uns tempos, mas entendemos, no fim das contas, que eles eram um pouco diferentes demais mesmo.

A mãe do meu amigo morreu num acidente de carro, em Minas, muitos anos depois dessa separação. O Nando fez uma rápida aparição no enterro e depois voltou a sumir, alimentando ainda mais a sua lenda. Um par de anos depois e eu fiquei sabendo que ele tinha morrido, de câncer no pulmão. Fumava tanto quanto bebia, Marlboro, evidentemente.

Agora, depois de ter escrito tudo isso é que me dou conta de que, mais do que uma nostalgia por não ter sido um hippie no sentido genérico do termo, ao ouvir a música senti saudades dessa figura. Ele foi um pouco pai de todos nós, guris do beco da João Manoel, já que era um vagabundo e por isso estava sempre disponível e cheio de histórias pra contar, ao contrário dos nossos verdadeiros pais, sempre ocupados trabalhando.

Uma grande figura, daquelas de quem a gente se lembra volta e meia com respeito, sem motivo aparente. Era íntegro no próprio desencanto.

25/06/2005 22:00 | Comentários (8) | TrackBack (0)