por Marcelo Firpo

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Ontem

Depois de considerar seriamente a hipótese de não ir devido ao cansaço acumulado da semana, o perfeito idiota consegue sair de casa e demora uns quinze minutos para achar o tal bar Alive, numa esquina torta da Ipiranga.

A entrada no bar em si, como diria um roteirista hollywoodiano que leu muito Joseph Campbell, já é por si só o cruzamento de um primeiro limiar: dentro tudo é escuro, mal se enxergam os rostos. Será que os bares eram tão escuros assim em 2000?

O perfeito idiota se comporta como um astronauta. Move-se lentamente, como se a gravidade fosse menor, e sente-se um pouco constrangido pelo fato de aparentemente não conhecer ninguém no lugar. É retirado do estado de semitorpor por um par de rostos conhecidos, que inclusive lhe oferecem cerveja. Ele inicialmente recusa.

O perfeito astroidiota conversa, interage, mas há uma espécie de película entre ele e o mundo. A atividade interna é muito intensa, tudo o que acontece é pesado, calculado, refletido. Não é que o perfeito idiota não esteja se sentindo à vontade; ele está na verdade fascinado com os extremos da vida, com os diferentes universos que a simples decisão de sair pode desvelar.

Poucas coisas no mundo teriam o poder para tirar o perfeito idiota de casa numa sexta à noite, depois das decisões difíceis no trabalho e depois de ter feito, com muito esforço, o filho nanar. Um show da Video Hits seria uma delas.

O perfeito idiota conhece Diego Medina há muito, muito tempo, desde os tempos em que zanzava pela Sound&Vision, uma locadora de CDs importados, circa 1995. Três coisas o fascinam no sujeito: o coração maior que o mundo, pulsando do lado de fora do corpo, facilmente perceptível a cada reencontro, em cada abraço pilhado; a personalidade flamboyântica e o talento musical absurdo. Esta última qualidade só ficou totalmente clara para o perfeito idiota depois de um show no Garagem, circa 99, em que ouviu pela primeira vez Video Hits e comprou o CD demo, que se tornou a trilha daqueles anos.

O perfeito idiota se preocupa com o horário. Está ansioso para que comece e ele possa ouvir novamente todas aquelas musiquinhas que embalaram sua pós-adolescência, mas também está cansado.

Antes do sow começar, o perfeito idiota acha que vai ficar num canto, ouvindo e vendo de longe.

O perfeito idiota lembra-se de outros shows, em outros lugares. Lembra-se de como costumava ficar pulando na frente do palco. Acredita firmemente que só o excesso de hormônios poderia justificar tal comportamento. Sorri benevolente, pensando em si mesmo em 2000, tantas coisas para provar para si mesmo, tantos apegos, tanta inexperiência. Tanta energia.

Finalmente, o pano que cobre o palco é retirado e lá estão todos eles. O perfeito idiota aplaude, e não consegue deixar de se sentir um pouco como aqueles velhinhos de sessenta anos que vão a shows dos Eagles para ouvir "Hotel California".

Diego e sua trupe conversam entre si antes de começarem, parecem estar tentando se lembrar de como se inicia um show. O perfeito idiota chega a temer, por uma fração de segundos, que eles não consigam. E então começa.

"Que vontade de voltaaaaaaar / tanta coisa pra fazer / tanos dias pra viver / e umas contas praaaaa pagaaaaar"

Não podia começar com uma letra mais apropriada. Uma onda de alegria envolve a multidão, mas apenas respinga no perfeito idiota. Para não dizer que ele não interage com o ritmo, ele mexe uma perna.

Franco chega para o perfeito idiota e comenta que é uma pena que Keigiro, que trabalha em Florianópolis, não tenha conseguido vir a tempo para o show. O perfeito idiota se sente mal por ter sido o responsável pela transferência do amigo para tal rincão marítimo, e se lembra que "Epilético" era o hino do departamento, executada pontualmente às 17h, durante o período em que esteve exilado por lá.

As músicas vão se sucedendo, "Sobras", "Cozinha Oriental", "5a Embalada", os comentários de Diego vão ficando cada vez mais Medinas, e o perfeito idiota se dá conta que a onda de alegria já molhou as barras cuidadosamente dobradas de suas calças. É realmente uma pena o Keigiro não estar vendo isso, pondera o perfeito idiota.

Diego se recusa a cantar "Menino Feio", por não se lembrar da letra, mas Gus e Cherry sobem no palco, dispostos a tudo. A música sai, como saem do chão os pés do perfeito idiota. Que hormônios, que nada.

O perfeito idiota se lembra do paraibano Calazans, que costumava dizer que esta música resumia a sua vida, ou algo parecido. Se lembra também de Bin e Bruno, todos entupidos de cerveja e camarão em Florianópolis e ouvindo o Registro Sonoro Oficial.

O perfeito idiota percebe-se subitamente rouco e mais uma vez lamenta a ausência do japa.

O perfeito idiota, talvez pelo efeito da cerveja que ele começou a beber há pouco e para a qual seu frágil organismo não está preparado, anota mentalmente que este show deveria acontecer, no mínimo, semestralmente. A letra da anotação mental sai bem garranchuda.

A banda ataca com "Sentido Anti-Horário", uma das mais belas canções de amor jamais escritas, e em meio ao mar de cabeças pululantes, o perfeito idiota enxerga as inconfundíveis feições de Keigiro, que sim, conseguiu se liberar da agência, atravessou a BR101 e chegou a tempo. O Japonês Voador comenta que quase chorou ao entrar no bar.

Mais algumas pérolas do cancioneiro popular se sucedem e o show se encaminha para o final. Estão todos molhados e felizes. O perfeito idiota tem que segurar um casaco de couro, porque achou que ia passar frio.

"(Vo)C" escangalha com tudo de vez. O perfeito idiota sorri embevecido.

Quando tudo termina, as pessoas ficam conversando em rodinhas, tentando manter viva a magia. O perfeito idiota pensa seriamente em festejar o seu aniversário, só para dar à banda mais um pretexto para tocar.

O perfeito idiota bebe mais uma cerveja, conversa mais um pouco e se encaminha para a porta. Várias pessoas com quem ele não falava há muitos e muitos anos insistem para que fique, beba mais, aproveite a noite, mas o perfeito idiota, por perfeito idiota que é, acha melhor ir embora.

Como na parábola budista, flores nascem de suas pegadas.


29/10/2005 09:31 | Comentários (7) | TrackBack (0)