por Marcelo Firpo

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My life as an interahamwe*

Ao chegar em casa nesta manhã e abrir a porta do banheiro, me deparei com cerca de setenta baratas agonizantes, de todos os gêneros, estágios e tamanhos.

Mais cedo, durante a madrugada, atravessando a Nilo de carro, eu podia jurar estar ouvindo o tropel de cavalos. Eu era os quatro cavaleiros do Apocalipse num só. Ainda assim, tinha a sobriedade e o senso de dever de um miliciano hutu, que vê a atrocidade como uma simples tarefa. No banco ao meu lado, dois tubos grandes (um deles, uma pechincha: 200ml grátis!) de Baygon, mais duas caixas de iscas, para as sobreviventes.

Como tudo começou? Os indícios mais claros - se desconsiderarmos o cheiro de ovos, que volta e meia eu sentia pela casa - se revelaram nas últimas duas noites, quando nos deparamos, aqui em casa, com umas duas ou três - separadas, não de braço dado, ainda - passeando distraidamente pelo corredor. Minha mulher tem (medo? pavor? pânico? fobia patológica? Difícil encontrar uma palavra adequada aqui, todas soam por demais suaves) de barata, o que nos garantiu alguns gritos dramáticos singrando a noite do Moinhos. Ainda assim, achei que era só o caso de comprar umas iscas de caixinha, na próxima ida ao super.

Eis que ontem, depois da tempestade bíblica que acometeu a cidade, chegamos em casa fazendo piadinhas sobre a possibilidade do nosso teto de gesso ter despencado, a exemplo do que aconteceu em duas lojas do Iguatemi, apenas para nos depararmos com uma catástrofe pior. Ao nos aproximarmos do banheiro, no final do corredor, já notamos uma incomum atividade artrópoda na área, mas a piece de resistance nos aguardava no box - isso mesmo, naquele lugar em que a gente toma banho: tinha umas seis ou sete baratas por ali, nas paredes, no chão, na porta de vidro, todas peripatéticas, e olha que eu nem sei bem o que peripatético significa, mas a sonoridade me sugere algo especialmente atarantado, confuso.

Minha mulher entrou em DESCONTROLE TOTAL NÍVEL DEZ, o Santiago começou a chorar e, no corredor, interrompidos animadamente pela passagem de uma ou outra mais assanhadinha, decidimos ir dormir na casa da vovó e, na manhã seguinte, antes de voltar, passar num supermercado.

Até este momento, o body count girava em torno de doze exemplares.

Aí eu resolvi dar mais uma olhadinha no banheiro, pra tentar entender de onde elas estavam vindo - achava que era do ralo - e me senti num filme do Indiana Jones, mais precisamente no "Caçadores da Arca Perdida", mais precisamente naquela parte em que ele e o gorduchinho ficam presos num templo subterrâneo cheio de cobras e, apavorados, descobrem que as bichinhas estão entrando no recinto pelas paredes.

Pois bem: olhando com atenção para uma coluna de azulejos numa das paredes, percebi diversas anteninhas. Elas estavam em buraquinhos atrás do rejunte, e a entrada da toca era, provavelmente, um buraco de interruptor - provavelmente uma entrada de chuveiro antiga - na parede, a cerca de dois metros do chão.

Foi ali que eu resolvi tomar uma atitude bastante cármica.

Fomos, retirantes, para a casa da vovó, esperei um Santiago ligeiramente assustado com a movimentação toda dormir e me toquei para a salvação da lavoura, o Nacional 24h do Iguatemi.

Ali, entre bandos de casaizinhos comprando cerveja para a balada, adquiri minhas armas e tomei o rumo do teatro de operações. Uma e vinte da manhã.

Chegando, fui metódico. Primeiro, providenciei um chinelo velho para acalmar as mais precisadas. Depois, espalhei as iscas pelo banheiro e área de serviço, para as eventuais sobreviventes. Por último, coloquei uma camiseta em volta do pescoço e peguei o tubo grande, 500ml de pura alegria química.

Sempre ponderado, comecei pelos ralos, só por via das dúvidas. Depois das descargas, tampei-os com baldes.

Aproveitei para matar com o spray uma grandona que se refugiou sob a máquina de lavar, na área. Sabe como é, testando a pontaria.

E, por último, a zona verde.

No banheiro, dentro do box, direcionei o spray para o buraco do interruptor, protegi o nariz com a camiseta e taquei-lhe o dedo, me esquecendo das vicissitudes da vida por alguns instantes. Fui desperto do meu êxtase por duas delas, absolutamente desesperadas, que avançando CONTRA o spray, se atiraram lá de cima para a morte certa, a chineladas.

Perfeccionista, ESPRAIEI também por toda a extensão da coluna de azulejos, encharcando o rejunte, que ninguém tem a obrigação de saber, mas é aquela massinha entre os azulejos.

Voltei pra sala, nariz correndo e olhos ardendo, esperei um pouquinho e repeti a operação mais duas vezes. Depois fechei tudo - um pano de chão vedando a porta do banheiro - e fui colocar o tubão vazio ao lado do lixo.

Voltei para a vovó, dormi o sono dos assassinos e agora de manhã retornei à cena do crime, me deparando com a cena descrita no primeiro parágrafo.

Deixei o Santiago gritando no berço e, munido do chinelo, esmaguei uma a uma as aproximadamente setenta. Só não dou a contagem certa porque me perdi, fascinado com o som dos plóc-plócs.

Quando a babá chegou, disse para ela dar uma olhadinha no banheiro. A mulher, diga-se de passagem, bastante RÚSTICA, quase vomitou ao abrir a porta e sentir o cheiro, veio me mostrar seus pelinhos do braço arrepiados. Combinei com ela que eu faria o recolhimento dos corpos e que depois ela passaria clorofina em cada milímetro cúbico da peça.

Por fim, com uma sacola plástica e quantidades industriais de papel higiênico, fui primeiro AMONTOANDO e depois recolhendo as criaturinhas do bom Deus. Sei que o Bruno vai ter um troço ao ler isso, mas a sensação de pegar, mesmo envolto em uma sacola de super, uma MÃO CHEIA de baratas esmigalhadas, algumas PINGANDO por entre os dedos, tal a quantidade, e especialmente, o CONTRASTE TÁTIL entre as partes cascudas e as partes gosmentas, é realmente uma experiência que levarei até final dos meus dias.

Acho que o problema está resolvido, pelo menos por enquanto.

Mas se alguém souber de um bom apartamento de dois quartos para alugar, minha senhora agradece.


*Também odeio títulos herméticos, mas este é o nome da milícia hutu que trucidou milhares de tutsis, coincidentemente chamados de "baratas", durante a guerra civil de Ruanda.

p.s.: como trauma pós-conflito, agora vejo anteninhas por toda a parte.

05/11/2005 09:58 | Comentários (24) | TrackBack (0)