por Marcelo Firpo

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Manhã flamejante

Teve um final de tarde em que eu cheguei em casa, o Inter ainda nem pensava em ganhar a Libertadores, e o zelador do prédio, colorado doente, veio falar comigo muito sério: "Marcelo, tu viu o grito da torcida do Barcelona?" "Não", respondi, incauto. "' Colorado, pode esperar, a tua hora vai chegar.' Pra que isso, né?" Naquela hora, quando esta final era ainda um fiapo de esperança, foi um comentário muito engraçado, um pouco de surrealismo, um pouco de provincianismo, me lembro de ter passado adiante para várias outras pessoas. Era, a bem dizer, uma piada.

Domingo. Santiago foi dormir na vovó, porque sabíamos que ia ser uma noite de muito foguetório e buzinaço nas imediações da Goethe. Me revirei na cama durante muitas horas, um pouco pelo barulho mesmo, mas também por nervosismo. Ao contrário da maioria da torcida, achava que era meio certo que o Inter ganharia. Nem mesmo assisti Barcelona x América, para não contaminar minhas convicções. Consegui dormir um pouco a partir das cinco da manhã, quando a cidade ficou subitamente silenciosa. Dormi demais, porque quando acordei já era oito e quinze. Me vesti às pressas, tomei um copo de água, peguei o carro e fui pra Goethe. No caminho, curto, escutei pelo rádio os primeiros movimentos da partida. Estacionei do outro lado do parque, na Comendador Caminha, e atravessei um bom pedaço de chão absolutamente deserto, um mar de silêncio. À medida em que me aproximava da passarela da Goethe é que comecei a enxergar pessoas, e todas pareciam muito apressadas, tentando se posicionar entre as árvores, para enxergar nem que fosse um pedaço do telão.

Atravessei a passarela só pra ver a imensidão vermelha que tomava a rua e depois retornei, com o objetivo de me embrenhar nos morrinhos de macegas que margeiam a Goethe e dali ter algum tipo de visão da partida. No caminho de volta, passei por uma senhora que deveria ter uns cento e trinta anos, numa cadeira de rodas, empurrada por uma enfermeira. Na sua mão absurdamente enrugada, uma bandeirinha colorada. Foi o primeiro momento em que fiquei com os olhos cheios d´água. Ganhem por esta velha, foi o que eu pensei na hora.

Não consigo me lembrar muito dos lances da partida em si, apenas das ondas de alegria, alívio e indignação que se sucediam, cada vez que o Barça errava um passe ou chute ou o juiz marcava alguma coisa. Tentei praticar um pouco de sociologia, observar os tipos humanos, me dar conta de que pessoas muito diferentes interagiam afu naquele momento, mas não consegui. A tela mandava em tudo. Quando o Fernandão saiu, o Índio quebrou o nariz e aquele Xavi começou a fazer misérias no ataque, decidi que não conseguiria ver o final da partida no meio daquela gente. Se o Barça fizesse um gol, a tristeza coletiva seria avassaladora, e eu não queria testemunhá-la. Fora isso, sentia falta de uma narração do jogo, uma narração de rádio.

Decidi, então, que correria de volta até o carro e lá ficaria ouvindo a partida até o final. Saí das macegas e comecei a correr por entre as árvores, de volta. Quando estava no meio do caminho, a explosão. Parei, desnorteado, no meio do areião, tentando refletir se aqueles gritos eram realmente de alegria ou de mais indignação. Aí escutei os foguetes. Quando me dei conta, corria de volta para a Goethe, onde moradores da Restinga recebiam abraços afetuosos de moradores da Bela Vista. Um representante das classes menos favorecidas deste país me disse: "O Gabiru queimou a minha língua!" Ainda assim, ele parecia feliz. Ao meu lado, marmanjos choravam como crianças. Imaginei por um instante a senhora de cento e trinta anos se levantando da cadeira de rodas e fazendo dancinhas.

Mais uma vez, com medo de uma última reviravolta e achando que aquilo tudo era emocionante demais, resolvi voltar pro carro. Assisti, solitário, no conforto de um Peugeot preto estacionado ao sol, os últimos dez minutos. Quando terminou, atravessei de novo o parque aos gritos e em chamas, lembrando-me do meu avô, Santiago como o meu filho, ex-cruzeirense, a pessoa mais doce que eu tive a oportunidade de conhecer na vida, e que dizia torcer sempre por dois times, "o colorado e aquele que jogar contra o Grêmio".

No meio daquela bagunça toda, foguetes, garrafas plásticas e tampas de isopor voando aos céus, imaginar a felicidade que ele sentiria naquele momento foi o jeito de me sentir, eu mesmo, feliz.

18/12/2006 08:50 | Comentários (14) | TrackBack (0)