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![]() O futuro é uma montanha de lixo Em 1976, uma greve de lixeiros tornou Londres uma cidade insuportável. Foi a mesma década em que a economia da Inglaterra decaiu, em que o governo já não não tinha mais dinheiro para bancar os caros programas sociais e uma série de greves teve como imagem mais marcante as montanhas de lixo acumulado nas ruas e esquinas da cidade. A podridão londrina foi o pano de fundo do surgimento do movimento punk, situação que Julian Temple não deixou passar em branco em O lixo e a fúria, sobre os Sex Pistols. Esta também foi a inspiração de 1985, um dos livros mais interessantes de Anthony Burgess. Não é dos melhores dele. Dá para citar cinco obras suas superiores a esta. O que torna esse livro notável é sua arrogância. Burgess era arrogante. Um Himalaia de presunção. Tinha alma de hooligan, viajando pela Europa em seu dormobile para enfrentar os críticos em debates na TV onde quer que o convidassem. Por isso mesmo só ele poderia ter escrito 1985. Foi um livro pensado para desancar 1984, de George Orwell. Escritores vivem em um mundo cujas relações, pelo menos publicamente, são cheias de amenidades. É praticamente impossível existir algo como 1985. Um ataque tão frontal à obra de outro. Eis porque é único. No caso de 1984, trata-se – diz Burgess – de má ficção política. O modo como o livro é celebrado – um manifesto libertário – o irritava por se tratar, na sua opinião, de uma terrível história sobre a perda da capacidade de se apaixonar, mas que, como profecia, falhou completamente. A obra se divide em duas partes. A primeira é um ensaio sobre 1984 e outras obras futuristas, como Admirável mundo novo, de Huxley. O problema sobre o livro de Orwell é a idéia de que o amor liberta. Não é algo passável, acusa Burgess, que debocha do pudor de Orwell ao escrever sobre violência e de ter produzido um livro que não era nada futurista, reproduzia simplesmente a Londres de 1948, feia, sombria e arruinada pela guerra. Orwell não foi um futurólogo, só descreveu sem muita criatividade a paisagem existente. Na segunda parte, o ápice do ego do autor de Laranja Mecânica. Não basta dizer por que 1984 é um livro ruim. Burgess escreveu a própria versão de uma Inglaterra totalitária. A Londres de 1976, fedida e à beira do colapso, superado o cinismo da swinging London da década anterior, foi a idéia básica para a especulação sobre como seria se tudo aquilo ocorresse numa escala maior. Se todo aquele transtorno já era imposto aos londrinos, como seria se os sindicatos fossem o governo? Trata-se do pano de fundo para apresentar um elemento comum à obra do autor, o sujeito estigmatizado por não se enquadrar em um esquema qualquer. Algum gerador de ironias históricas deve ter entrado em ação nesse ponto. A Londres que ele descreveu desapareceu rapidamente. Margareth Tatcher chegou ao poder no final da década. Enfrentou uma longa greve de mineiros cuja conseqüência foi o apoio da população às reformas liberais do governo que partiram a espinha do sindicalismo. Uns poucos anos depois da publicação, 1985 estava superado. No fim das contas, teve menos repercussão e importância do que 1984, que nunca deixou de ser celebrado. Mas é infinitamente mais interessante. # alexandre rodrigues | 3 de maio Comentários (5) | TrackBack (0) |
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