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Um escritor é culpado pela infantilidade de seus leitores? Sérgio Rodrigues demonstrou certo espanto ao notar que o suplemento literário do El País dedicou uma capa a Charles Bukowski. Acabou reconhecendo algum mérito nele, sem deixar também de associá-lo ao óbvio: histórias de porres e ao final do texto, citando o argentino Rodrigo Fresán, a leituras de adolescente. Não faltam avaliações assim. Se comportam com relação a Bukowski como aquela geração de meninas que agora está batendo nos trinta e um dia gostou dos Backstreet boys. A cultura pop em quatro décadas se tornou um monstro tão grande que é capaz de uma série de roteiros, um para cada gosto, que levam à vida adulta e lá também podem manter a vítima em estado vegetativo se não houver um pouco de imaginação. No Brasil, desde os anos oitenta, quando os livros começaram a ser publicados pela Brasiliense, Bukowski e os beats passaram a fazer parte desse papel de transição, tomando o lugar que já foi de Henry Miller. Na época de Humble fish também havia os leitores de Susan Hinton, que depois saíram de moda. Aí de repente descobrem Cortázar. Se afastar de Bukowski hoje em dia significa manter distância do infantilizado admirador típico do escritor, que geralmente se explica dizendo que ele "escreve cada história de porre, viu véio?" Mas na ânsia de mostrar que cresceram, geralmente acabam negando tudo. Os dois pontos de vista não parecem enxergar o humor por trás do álcool. Será que ninguém notou que Cartas na rua tem uma ligação direta com Bartleby? O humor não é elegante como o de Melville, mas Bukowski faz do surrealismo do trabalho, no caso o de carteiro ou burocrata dos correios dos Estados Unidos, motivo de páginas e páginas que às vezes parecem um episódio de The Office. Ou que Mulheres, sobre a incapacidade patética de um homem adulto de não agir infantilmente em seus relacionamentos, tem uma abertura e um final muito bons? Andei relendo trechos dos dois livros. Depois de mais de uma década ficam mais claras as fraquezas de um autor que gostava de escrever tudo quase de primeira, com mínima revisão final. Mas muito do que encantava antes ainda está lá: os personagens desajeitados e preguiçosos. Os parágrafos curtos e diálogos rápidos. As imaginadas manchetes escandalosas para as situações vexaminosas dos personagens. As descrições dos escritores como "alguém que faz sucesso porque se veste como um caubói" (Jack Kerouac) ou "... era poeta porque vivia sustentado pela mãe". Depois de ler a biografia escrita pelo Howard Sounes, passei a admirar a abnegação do sujeito para ser escritor. Criar contos nas margens do jornal por falta de dinheiro para comprar papel demonstra um amor tão desesperado pela literatura que nunca vou deixar de olhá-lo com simpatia. Também sou grato ao fato de que tenha gostado de Cartas na rua sem nunca ter ouvido falar de Bukowski e que tenha sido este e não Farda, fardão, camisola de dormir que eu escolhi como brinde naquela promoção do Circulo do Livro de 1989. Mas Bukowski também soube ser preguiçoso nos livros de contos, mesclando dois ou três de médios a bons (às vezes muito bons) por obra com um lixo medíocre que parece ser, por outro lado, o que mais atrai os seguidores do mito, o escritor e poeta bêbado. Não há culpados maiores pela má fama de Bukowski do que seus fãs, gente que acha que literatura e diário são praticamente a mesma coisa. Um tipo que é incapaz de distinguir entre uma história e o momento lamentável da noite anterior em que vomitou no vaso alheio, limpou a boca com as costas da mão e pensou "Vou escrever sobre isso". Não fossem estes e podia ter melhor fama. Podia ser reconhecido como o que verdadeiramente foi: um escritor com dois ou três bons livros, sem ser espetacular, que escrevia com grande senso de humor. Abaixo, um trecho de Pulp que é mais ou menos o que eu quero dizer. “Liguei a televisão. Passava um comercial. SOLITÁRIO? DEPRIMIDO? ALEGRE-SE. LIGUE PARA AS NOSSAS LINDAS GAROTAS. ELAS QUEREM FALAR COM VOCÊ. PAGUE COM SEU CARTÃO DE CRÉDITO MASTER OU VISA. FALE COM KITTY, FRANCI OU BIANCA. TELEFONE 800-4358745. Apareciam as meninas. Kitty era a melhor. Tomei um gole de uísque e disquei o número. (...) – Fala, gostoso, aqui é a Kitty. – Alô, Kitty. Meu nome é Nick. – Ooooh, sua voz é tão sexy! Já estou ficando tesudona. – Não, minha voz não é sexy. – Sabe de uma coisa? Eu me sinto tão perto de você! Parece que estou enroscada, sentada no seu colo, olhando nos seus olhos. Tenho olhos grandes e azuis. Você está bem perto, querendo me beijar. – Isso é bobagem, Kitty. Estou aqui escutando a chuva cair e mamando meu uísque escocês. – Ouça, Nick, precisa usar um pouco a imaginação. Vamos tentar e você vai ficar surpreso com o que pode conseguir. Não gosta da minha voz? Não acha ela um pouco... ah, sexy? – É um pouco, mas não bastante. Parece resfriada. Está resfriada? – Nick, Nick, meu garoto. Eu sou quente demais para ficar resfriada! – Bem, parece resfriada. Talvez fume demais. – Só fumo uma coisa, Nick! – O que, Kitty? – Você não imagina? – Não... – Olhe pra você mesmo, Nick. – Tudo bem. – Que está vendo? – Bebida. O telefone. – Que mais, Nick? – Meus sapatos... – Nick, que coisa grande é essa se projetando de você enquanto fala comigo? – Ah, isso? É minha barriga! – Continua falando comigo, Nick. Continue ouvindo minha voz, pense em mim no seu colo, o vestido levantado, mostrando meus joelhos e minhas coxas. Eu tenho cabelos louros, compridos. Pense nisso tudo, Nick, pense em... – Tudo bem. – Tudo bem, que está vendo? – A mesma coisa: telefone, meus sapatos, minha bebida, minha barriga... – Nick, você é mau. Me dá vontade de ir aí e lhe dar uma surra. Ou talvez deixe você me dar uma surra!. – Quê? – Me bate, me bate, Nick! – Kitty... – Sim? – Me desculpa um momento? Preciso ir ao banheiro. – Oh, Nick, sei o que vai fazer! Mas não precisa ir ao banheiro para fazer isso, pode fazer no telefone, enquanto fala comigo! – Não dá, Kitty, Preciso mijar. – Nick – ela disse – pode considerar a nossa conversa terminada. |
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