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Love # 3
O bilhete apareceu numa terça na caixa de correio.
Caiu de suas mãos no tapete da sala. Um pequeno retângulo rosado entre extratos bancários, contas, folhetos de propaganda e as contas do condomínio do prédio, que sempre iam parar entre a correspondência do apartamento.
Apanhou-o de volta. Virou-o de um lado ao outro entre os dedos. Estava escrito a caneta cor de violeta. Uma letra feminina desconhecida.
ME ENCONTRE EM PARIS NO DIA 10.
Obviamente um engano. Não conhecia ninguém em Paris. Jamais pensou nem mesmo em sair do país. Ainda não era dia 1º, mas não estava tão longe o dia 10. Caso tivesse uma viagem marcada, muito mais se tivesse combinado uma com tão estranhos detalhes, iria se lembrar. Tampouco se poderia evocar presença feminina em sua vida desde que Maria José foi embora. Continuou intrigado por mais algum tempo, depois não deu mais atenção ao bilhete. Jogou-o sobre a mesa da sala, abriu uma cerveja e ligou a tevê no canal de esportes.
Depois que Maria José foi embora, foi obrigado a levar consigo Maciste, o cão do casal, para o pequeno apartamento onde morava.
Maciste era um labrador adulto. Tinha a envergadura inadequada para um apartamento de pequenas dimensões. Não precisava de muito esforço para lançar objetos e livros ao chão e abalroar as cadeiras. Seu rabo, abanando amistoso, derrubava várias vezes por dia o gato esculpido em madeira, dono de uma sorridente careta oriental, que recebeu da mãe pelo aniversário quinze ou dezesseis anos antes. Todas as manhãs Maciste emporcalhava os jornais colocados no chão da cozinha, fazendo seu despertar invariavelmente ocorrer sob um odor insuportável. Ainda tinha o hábito de exigir passeios diários. Mesmo nos dias de chuva, exceto a torrencial, podia ser visto lutando para mantê-lo sob controle na coleira, arrastado pela calçada para diversão dos outros donos de cães que tiveram o bom senso de escolher um animal menor.
Depois que Maria José foi embora, a vida se transformou numa balada de dor-de-cotovelo em um disco de 78 rotações. Costumava sentar todas as noites com Maciste a seus pés. O canal de esportes era o único que sintonizava a pequena caixa preta que um amigo, técnico de uma empresa do ramo, surrupiou do trabalho e instalou na sua tevê. Estava com defeito, sintonizava um só canal, o de esportes. O amigo prometia eternamente uma visita para consertar o aparelho que nunca acontecia. Assistia a noites inteiras de futebol, lacrosse, rúgbi, sinuca, pôquer, boliche, basquete, natação, hóquei, qualquer esporte que estivesse sendo exibido até a hora em que vinha o sono ou Maciste, depois de um tempo parado, começava a lamber sua mão para pedir comida. Punha uma grande quantidade de ração no pote ao lado da cama, apagava a luz e caía no sono enquanto ouvia o cão mastigar sem nenhum cuidado de não fazer barulho.
Examinava, semanas depois, a correspondência recém-saída da caixa do correio. Um pequena onda de calor tomou-lhe a face quando encontrou um novo retângulo rosado.
Um segundo bilhete fora escrito. A mesma letra feminina desconhecida.
VOCÊ NÃO FOI. DESTA VEZ VÁ. ME ENCONTRE EM PARIS NO PRÓXIMO DIA DEZ.
Maciste veio recebê-lo na porta do apartamento, derrubando mais uma vez a estátua do gato de madeira. Se jogou no sofá, examinando detidamente o pequeno pedaço de papel, tentando adivinhar-lhe a autoria. Agora, se ainda podia pensar em engano, era o caso também de reconhecer que havia grande chance de ser ele mesmo o destinatário do bilhete. Mas quem o teria escrito? Mais cinco ou seis vezes manuseou o papel, frente e verso, frente e verso, à procura da resposta em vão.
Desta vez a idéia não o deixou tão facilmente. Acompanhou-o pelo resto da noite, infiltrando-se ao seu lado e ao de Maciste para ver uma competição de lacrosse. De todos os esportes recém-descobertos, era o seu favorito. Gostava de ver as tentativas de quem não estava com a bola de recuperá-la. Os jogadores portavam todos um bastão de mais ou menos um metro e meio com uma cesta oval na ponta. A bola era pouco maior do que as de tênis. Só podiam carregá-la dento da cesta. Quando estava sem a bola, um jogador insistia por tomá-la atingindo com o bastão, sem pena, o capacete e o rosto do adversário.
A idéia continuou a acompanhá-lo até quando desistiu de pensar no assunto. Tinha poucas mulheres de quem desconfiar. Na verdade, nenhuma. Desde que Maria José foi embora, não se interessou por qualquer uma das poucas que cruzaram seu caminho. O sentimento geral era de desinteresse pelo sexo feminino, o que não significava nenhuma mudança de padrão, pois muito menos lhe interessavam os homens. Só deixou de pensar nelas como ocorria antes de Maria José ou quando Maria José estava sempre presente, quando ainda não tinha ido embora.
Havia enigmas adicionais: por que um bilhete rosa? Por que tão pequeno? Por que Paris? Jamais manifestara, pelo que podia se lembrar, qualquer simpatia pela cidade. Suas poucas referências aos franceses eram nada positivas: um povo que não tomava banho direito e gostava de comer e beber vinho. No entanto, sobre a mesa de centro, o bilhete o instava a tudo abandonar, nem que fosse por uns dias, e lá surgir como um romântico malandro de camisa listrada. Por que?
(continua)
# alexandre rodrigues | 25 de julho
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