|
« |
Home
| »
Love # 4 As decisões humanas se dão, em nível fundamental, de acordo com um conjunto elementar de células que um dia, sem nenhuma razão aparente, começaram a encher a cabeça de cada habitante do planeta a respeito do que fazer com suas vidas. Passaram a contar a eles sobre comer, dormir, defecar, respirar e outros atos. Naturalmente, como lidar uns com os outros. O que dizem a cada um deles é diferente. Nem todos são capazes de entender ordens complicadas. Não faria sentido perguntar a uma doninha o que acha da Nona Sinfonia de Beethoven. Mas também é verdade que quase todos os habitantes do planeta estão sempre ouvindo o que dizem suas mentes. E o que dizem suas mentes: em um planeta onde nada faz muito sentido não há nada mais valioso do que aquilo que se pode fazer sem pensar. Uma decisão humana pretende ser o resultado de um aprendizado constante de seis ou sete milhões de anos do planeta, o que por si só deveria garantir que sejam cheias de sentido. Não quer dizer que sejam realmente sábias. Não há ademais qualquer garantia que venha a estar certa uma antiga frase ainda bastante repetida naqueles dias. - Ordens são ordens. No seu caso, as células e ordens mais fundamentais foram arranjadas de modo a fazê-lo desconfiar do mais inocente dos acontecimentos. À medida que a noite foi avançando, cresceu dentro de si a certeza de que estava sendo vítima de uma pilhéria. O bilhete, o convite a Paris, a letra feminina, não podia ser além desta a razão. Depois de um tempo, não havia mais dúvidas. Resmungava consigo mesmo em voz alta, provocando a cada vez um sobressalto em Maciste, acostumado a geralmente ser o único habitante do apartamento a se manifestar em alto e bom som. Mas quem? Assim como não havia nenhuma presença feminina, tampouco havia quem pudesse chamar de amigo. Sua única companhia, todos os dias da semana, quase todos os horários, era Maciste. Depois que Maria José foi embora, o cão se tornou seu maior companheiro. Maciste aprendeu alguns truques. Gostava de saltar para apanhar a bola, entregando-a a ele em seguida. Costumavam brincar mesmo dentro do apartamento, Maciste causando ainda mais danos do que o habitual. O cão olhou-o docilmente. Pôs sua grande rosada língua para fora. Por um momento pareceu olhar em volta em busca da bola para que pudessem recomeçar sua brincadeira favorita. Mas, apesar disso, apenas deitou a cabeça no sofá com ar conformado. Sentou-se ao lado do labrador. A cada instante aumentava a indignação. Alguém tentava invadir sua privacidade. – A minha privacidade, Maciste. O bilhete. Onde estava o bilhete? Encontrando-o, rasgou o pequeno pedaços de papel uma vez e mais uma e uma e outra e novamente e de novo até não sobrar nenhuma letra e Paris voltar a ser uma cidade distante e, para ele, sem nenhum interesse.
Tremeu ao se deparar com um novo bilhete rosa na caixa do correio. SUA ÚLTIMA CHANCE. VÁ A PARIS OU NUNCA MAIS ME VEJA. O funcionário da agência de viagens era um desses calvos precoces. Combinava um rosto ainda juvenil com o alto da cabeça com quase nenhum dos fios loiros que um dia o habitaram. Dependendo de quem o olhava, parecia muito jovem ou um homem de meia idade. No seu caso, Rui enganou-se logo na primeira frase: - Será uma viagem romântica? Rui marcou a passagem. Presenteou-o com uma bolsa de viagem de plástico com o logotipo da agência e uma pochete, na qual, recomendou, deveria carregar todo o dinheiro. Com um gesto impessoal, conferiu a fileira de cheques que acabara de preencher e assinar – as prestações que o escravizariam por anos. Hospedou Maciste em um hotel para cães. O valor equivalia a três ou quatro dias do que havia pago para ficar em um hotel de verdade. O cão encolheu-se com ar resignado no cercado, fechado com grades. Parecia uma prisão. Rumou para o avião com a excitação dos descobridores diante de uma terra desconhecida, uma montanha, um navio abandonado cem ou duzentos anos antes. As dúvidas ainda tentavam assaltá-lo, mas conseguira mantê-las à distância de seus principais pensamentos. Corria o risco da vergonha e da rejeição, mas que diabos...
Maciste tentou levá-lo à força escada acima. Com grande dificuldade, abriu a caixa do correio. Encontrou-a abarrotada com a correspondência de vários dias. Examinou-a toda ali mesmo chegando ao fim sem conter a decepção. Não havia bilhete algum. |
|