Parte de Uma Estória Obscena
Em 1974, Janer Cristaldo publicou um livro chamado Uma Estória Obscena. Quase todo ele é irrelevante, mas o conto epônimo tem seu valor. Como tem a ver com culinária, reproduzo aqui a primeira metade do conto.
Uma Estória Obscena
_ Mãe, que é um filé?
A pergutna fez enrubecer a atarefada dona de casa, que após repreender a menina, foi queixar-se ao marido:
- Não sei onde a Verinha aprende palavrões. Acho que devíamos proibi-la de brincar com as crianças do vizinho.
O pai, homem realista, sugere ser melhor nada esconder à filha.
_ Antes aprender em casa que com os moleques na rua.
Não transcorrera ainda uma semana, quando a garotinha voltou à carga. Queria saber que significava strogonoff. A mãe fê-la sentar e começou a explicar-lhe, cheia de dedos, certos fatos históricos. Da maneira mais simples possível, usando por vezes parábolas ou imagens, falou sobre a Era do Grande Esbanjamento, quando os homens alimentavam-se, quais selvagens, de frutas, carnes e cereais, em estado natural, ou, no mais das vezes, ligeiramente cozidos ou assados. Alguns devassos, em meio ao desregramento geral, preparavam refeições de complexa elaboração e duvidoso refinamento. Um dos mais dissolutos gastrônomos da época fora um monge russo depravado chamado Strogonoff. Seu nome ficou historicamente associado a um molho obsceno e viscoso, que, misturado às carnes, dava-lhes um sabor perverso.
E já que tocara no assunto, aproveitou para falar-lhe sobre filé. Durante um longo período, o homem retirara as proteínas necessárias a seu organismo de postas sangrentas de carne. O filé era uma porção especial de carne de um grande animal pré-histórico, o boi. Era consumido em orgias clandestinas por devassos de grande fortuna, que se reuniam em certas casas suspeitas, chamadas restaurantes.
_ O espetáculo era horroroso, explicou a boa senhora, escolhendo as palavras. Os libertinos comiam ás vezes até frente aos próprios filhos, com a mesma naturalidade com que a mamãe e o papai trepam na tua frente. Alguns proprietários de restaurantes eram imorais a ponto de exibir carnes nas vitrines. E todos os freqüentadores desses locais de má fama, recebia, logo na entrada, uma revista obscena chamada cardápio, ou ainda, menu. Existiam também construções descomunais, os super-mercados, onde os viciados podiam adquirir desde comida até aparelhos – chamados talheres – para práticas solitárias.
Até historinhas infantis eram repletas de pornografia, tal era a dissolução da época.
_ Qualquer criança sabe hoje em dia que o Lobo Mau queria mesmo era manter relações sexuais com Chapeuzinho Vermelho., Mas naqueles tempos, pais degenerados contavam aos filhos que o lobo queria comer Chapeuzinho.
Verinha ouviu-a em silêncio o tempo todo. A mãe pôs um ponto final ao embaraçoso diálogo, e mandou-a brincar de papai e mamãe com os amiguinhos. À noite, manifestou suas preocupações ao marido.
_ Não entendo mesmo. Hoje ela veio me perguntar o que era strogonoff, não consigo imaginar onde ela aprende esses palavrões. Dei uma explicação boba qualquer, pois nem eu sabia do que se tratava.
O marido, após demonstrar certa estupefação, desconversou e continuou fixo na TV. Estava corujando um comercial que vinha provocando intensas polêmicas. Uma companhia de turismo, sob o pretexto de mostrar a cultura de diversos povos, apresentava quadros de museu famosos. Em meio à sucessão de inocentes obras eróticas, surgia, por um segundo, a Santa Ceia. O quadro tinha inegável valor artístico e religioso, não seria o gesto simbólico do Cristo partindo o pão que anularia seu valor estético. No entanto, algumas autoridades educacionais consideravam nem todos os telespectadores serem suficientemente maduros para apreciar determinadas obras. Além disso, a TV entra em todos os lares, e no lar vivem as crianças.