Excelência no xis caseiro
Desde Porto Alegre cultivo o hábito de fazer xis em casa. Quando ainda habitava a capital gaúcha, não havia dúvida possível: todos os ingredientes provinham do Zaffari. E nada decepcionava: a carne moída de primeira sempre macia, o queijo lanche (ou prato) fatiado em uma grossura correta, milho em lata jurema, maionese Hellman's, ketchup Heinz (bons tempos), alface e tomate a granel. Com a mudança de cidade, tudo ficou mais difícil.
A excelência e frescor dos ingredientes é quase 80% do prato em si. A carne tem que estar fresca e, principalmente o pão, tem que ser de muito boa qualidade para um resultado final correto. Quando morei no Rio de Janeiro tudo ruiu: a carne moída raríssimas vezes é de um animal abatido na véspera e os pães, pelo menos nas padarias e supermercados da região do posto 3 de Copacabana, são caros e deixam a desejar. Isto para não falar das verduras péssimas que o Pão de Açúcar local oferece.
Parágrafo off topic: queria que o senhor Abílio Diniz explicasse por que a rede Pão de Açúcar/Sendas é tão ruim no Rio de Janeiro, principalmente se comparada com as lojas da Cia. Brasileira de Distribuição em São Paulo nas bandeiras Pão de Açúcar, Extra e Compre Bem. Carioca aceita qualquer bagulho?
Voltando, no Rio infelizmente a arte do xis caseiro perdeu força pelo baixo nível dos insumos. Mas persistiu, com uma leve queda nos critérios. Pois foi quando vim a São Paulo que tudo mudou.
Lembrando, em Porto Alegre o Zaffari oferece carne moída na genérica categoria "de primeira". Mas que corte será este? O Extra aqui ao lado de casa só oferece carne moída de Acém ou Paleta. Depois de alguns testes, concluí que o hambúrguer não tinha a maciez nem crocância necessária pós-fritura. Cabia inovar.
Num açougue pedi o corte qualidade "de primeira" mais barato, o Patinho, e pedi para moer. Nunca imaginei que tinha acertado tão em cheio. O Patinho conserva uma sulência maravilhosa após a fritura e ainda adquire uma boa crocância. Fiz testes com alcatra e não é a mesma coisa: falta gordura, a carne não tem a mesma suculência e fica seca, desce quadrado. Se o leitor tem alguma sugestão estou aberto ao debate mas, até segunda ordem, pelo preço e qualidade, o Patinho é a melhor carne moída para o hambúrguer (e qualquer outra aplicação , do guisado ao molho bolonhesa, do quibe ao pimentão recheado). Nem é preciso dizer o quanto a carne deve tender para o vermelho muito mais do que para o marrom, cor que indica seu estado de conservação. Pedaços brancos devem estar presentes, mas sempre moderamente.
Isso estabelecido, cabe zelar pela qualidade do pão (ou, como no termo inglês, bun). E também, por que não, pelo tamanho. Via de regra os supermercados (até o Zaffari tinha esta mania) oferecem um pão de hambúrguer muito pequeno, que não acomoda um bolo de carne de tamanho satisfatório. A solução é se contentar com um hambúrguer júnior, comer dois ou, como eu faço, procurar uma padaria decente que ofereça um pão de baurú tamanho GG. Costuma até ser mais barato que no súper. Como desconheço o que determina um pão excelente, simplesmente aconselho: procure padarias tradicionais. Prefira sempre a padaria que parecer mais antiga e nunca, nunca mesmo, apele para pães industrializados seja da Seven Boys, Pullman ou qualquer outro simulacro de pão.
Alguma dúvida quanto à escolha de tomates frescos? Queijo lanche (ou prato) de qualidade? Alface imaculada? As cores. Sempre são as cores vivas que indicarão o melhor hortifrutigranjeiro.
Maionese só Hellman's ou da feita em casa. Como raro é quem tenha paciência pra fazer maionese sempre que precisa, prefira Hellman's. Nenhuma outra maionese industrializada merece usar o nome "maionese". O slogan é real. Ketchups, há muitos de boa procedência e sabor. Não há o mesmo determinismo que em relação ao creme da morte francês. Se dinheiro não for problema, Heinz é a melhor opção.
Terminadas as considerações sobre os ingredientes, que são, como disse, praticamente a garantia de qualidade do xis caseiro, vamos à preparação.
Não compactuo das receitas que recomendam misturar ovo e miolo de pão à carne in natura. O resultado nunca foi bom, pelo menos para mim. Quando a carne moída segue os padrões de qualidade descritos acima, só uma frigideira de óleo quente e uma boca de fogão poderosa já fazem o serviço. Nos primeiros minutos, espalhar modelando a carne com um garfo é muito recomendável: a tendência é que a carne "suba" com o calor, deixando a parte de dentro crua. O calor da chapa é o que vai formar a casca crocante e deliciosa do hambúrguer. Preaquecer um pouco a chapa é uma boa. Não tem o menor problema queimar um pouquinho: o sabor até melhora. Depois de algumas experiências, recomendo até chamuscar a carne permitindo que o fogo queime inflame um pouco no óleo. O paladar final fica levemente defumado. Em caso de a carne não estar muito fresca, recomendo colocar mais sal (ou até limão) e deixar em fogo brando por bons minutos afim de "secar" qualquer azedume. Carnes frescas podem ser servidas mal passadas, pingando, de acordo com o bom gosto e caráter de cada um.
O ideal é que o pão asse alguns minutos em forno para ficar crocante, principalmente se estiver dormido. Isto dará consistência para que não se rompa quando molhado pelos outros ingredientes. Nenhum mistério, agrupe-os como melhor lhe aprouver. Mas atenção para o pulo do gato: numa metade do pão coloque só o queijo, nas outras, o tomate, alface, cebola, etc. Esta metade em que está o queijo vai ser posta sobre a carne na frigideira, para o queijo derreter. Desta forma, o pão ficará besuntado com o óleo da carne e adquirirá um sabor único. Com uma espátula, vire o pão e deixe-o em contato direto com a chapa, para absorver todo o suco da carne. Diminua o fogo para o bun não queimar. Com a espátula ainda, erga a metade do pão com a carne e coloque a outra metade do pão (a que tem os ingredientes) diretamente na frigideira. Monte o hambúrguer e esmague-o com a chapa, virando de um lado e de outro. Já pode desligar o gás. Deixe secar absorvendo o calor que ainda resta na frigideira para que fique ainda mais crocante.
Eis! Seguindo estas indicações, serás capaz de fazer um xis melhor que qualquer treiler ou rede internacional de fast food.
PS — Este post é um protesto pela baixa qualidade dos xizes de rua, que já foram bem melhores e mais baratos em Porto Alegre. De Rio e São Paulo nem se fala: nunca se ouviu falar de xis decente. Resta seguir estes mandamentos do xis caseiro excelente ou pagar por um double Whopper w/ cheese no sempre bem vindo Burger King. Isto se tu estiver em São Paulo, claro. Em Porto Alegre, prefira Alfredo e Cavanhas.
Hermano | 15.05.2006, 1:42 | Comentários (23) | TrackBack (0)