UM CONTO
Meu último conto. Ia sair numa seleção aí, só que meu amigo que ia publicar é um idealista. Sorte do mundo.
POR BAIXO DA ROLETA
A mochila vai antes, lançada por sobre o muro. Logo depois nós, montando a parte de cima como um cavalo. Três Figueiras é muito bem servido de praças desertas pra não ser aproveitado. No máximo vão uns doentes da clínica ali de perto jogar uma bola. Alguns fumam com a gente. Muito melhor um baseadinho pela manhã que tentar aprender química orgânica no Farroupilha. A onda mais gostosa é a do começo do dia. Também, o produto que a gente pega na Bom Jesus, logo mais acima depois da Protásio, é dos melhores da capital. Naquele dia íamos ter que dar esta caminhada, ninguém tinha guardado nada do fim de semana. O Evandro sempre se estressa:
- Se algum dos guardas me vê eu tô fodido. Certo que minha mãe fica sabendo.
Na primeira quadra a gente passa a apenas alguns metros da casa dele.
- Quem faz a mão de entrar no beco pra falar com o Paulinho?
Eu gosto de ir falar com o patrão. Ir seguido lá faz com que o cara se lembre de mim e isto rende pontos. Ganho cada vez mais maconha pelo mesmo dinheiro, podendo separar um pouco pra mim. Não é desonesto, só um bônus pelo risco. Como os outros se cagam acabo indo sempre, mesmo.
Tem um fliperama na lanchonete da entrada da Vila Bom Jesus. Eles ficam jogando por um quarto do preço de outros lugares, enquanto eu driblo os chinelões que ficam por ali achacando. O Paulinho é o quarto barraco seguindo por dentro da terceira ruela de chão batido. Nem sempre é ele que atende: participam do negócio a mulher e às vezes as filhas. Teve um dia que sujou bem na hora em que eu tava comprando. Tive que ficar escondido horas jogando buraco, sabendo que podia me foder a qualquer instante. Ria de nervoso do quanto o nome do jogo expressava a situação.
Desta vez tava o cunhado do Paulinho na casa. Mesmo quem não vai na vila sabe que ele é um cheirador de merda. Rouba até botijão de gás da mãe pra sustentar o vício. Ótimo exemplo para nunca experimentar a porcaria.
- Hoje eu tô que tô, vou mandar uns três pra vala.
Fazia mira no chão com uma pistola cromada, simulando o barulho dos tiros com pequenas explosões da boca. Faço que não vejo e vou direto pra cozinha. A mulher do Paulo prepara uma mamadeira. Na pia, ao lado do açúcar, uma barra de no mínimo uns sete quilos de fumo prensado.
- Eaí, alemão! Pera que tô terminando aqui e já vou te fazer a mão.
- Tudo bem, Marta? E os da lei, têm aparecido?
- Menos seguido, graças a Deus. É bom nem falar que acaba chamando.
- Me faz aí aquela mão servida de cliente antigo.
Ela corta em cima da tábua um naco com a faca de pão. Uma quantidade qua vale o triplo do que tava pagando.
- Faz assim: dá um talho aqui e aqui, separa em três e nesta coloca os farelinho.
Marta obedece, sorrindo. Acho que se apegou a mim me vendo toda semana. O Paulinho é mais frio, não deixa intimidade influir no negócio. Cara esperto. Será que baixou Central?
- Onde tá o Paulinho?
- Paulinho foi fazer carreto lá na Restinga.
A divertida satisfação com que corta e embala a maconha justifica o status de hobby que a atividade parece ter. Uma das garotas chegou pedindo meio real.
- Tá passando o Toninho do sacolé.
Ao sair topei de novo com o cunhado, ainda brincando com a arma. Apontou:
- Te liga pra não rodar na saída, boy.
Não respondi nada. Não sou boy. Playboys são meus colegas que mudam de tênis uma vez por semana e sempre é Reebok ou Nike. Eu uso Olympikus. Para eles da vila certo que eu devo ser rico. Vêem na minha cara que eu não sou daqui, enxergam uma vida que não têm, se ressentem sem nem saber direito por quê. Não importa que exista gente muito mais rica, eu é que venho aqui e é em mim que projetam seu rancor. Os chinelões me perguntam se fiz a mão. Caminho rápido e me limito a erguer um polegar, fingindo que não ouvi o pedido por um fino arregado. Não se pode dar nenhuma confiança ou já querem direto tuas costas pra montar.
Evandro e Mariel continuam jogando Street Fighter II. Só na Bom Jesus para ainda ter este jogo pré-histórico.
- Porra, mas que demora, hein!
- A Marta tava ocupada mas fez bem servido pra caralho.
Distrubuí em dois gestos o que cabia a cada um. Queriam ver a minha.
- Bah, mas que espiação. Não aprenderam ainda a confiar?
Mostrei a minha, igual às outras. O arrego já estava aninhado dentro da cueca. Guardei a grande também no espaço entre o saco e o pau. Os outros fizeram o mesmo.
Caminhamos de volta pela lomba que dá na Protásio. Neste calor seco as ruas de terra levantam uma poeira infernal, fica uma bosta respirar. Se chove é um atoleiro. Imagina quem convive todo dia com isso. Evandro se diverte com uma placa de oficina: Concertus geral, n° 171.
- Imagina deixar o carro pra arrumar num lugar destes!
Grande merda. Carro é pra gente rica. Eu pego ônibus e passo por baixo da roleta.
março de 2005
01/06/2005 18:33 | Comentários (5) | TrackBack (0)