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48H

Ontem

9h22min

A cidade só parece menor quando não a conhecemos o suficiente. Ultrapassada a barreira da avenida Indianápolis, é possível mais uma vez se deslumbrar com a enormidade, os diversos afazeres, todo o fluxo gerador de renda e lixo. Há uma cidade inteira depois da fronteira com o ABC. Há outro mundo, outra humanidade, novos focos de doença e cura. A praga dotada de linguagem está alastrada por todos os lados.

12h20min

O outdoor anuncia o "mais alto condomínio de altíssimo luxo", no bairro Moema. 460 metros quadrados. Dista mais ou menos uma hora de casa, sem trânsito, duas horas e meia, com trânsito. Nele habitarão os mais renomados advogados, médicos e empresários da cidade, ainda que de nome seja impossível reconhecê-los. Gastam em algumas horas o que seria suficiente para pagar o teu aluguel e conta no supermercado. Estão absolutamente convencidos de que não há nenhum outro tipo de vida possível. Cada um de nós, dentro de seus veículos, também padece desta mesma convicção. A cidade inteira está coberta de fumaça.

14h13min

Sou atacado. A agressora olha pra mim com olhos contraídos e voz de choro dizendo "pelo amor de Deus tenho fooooome". Continuo caminhando, mas a contração de seu rosto se refletiu em meu peito. A lembrança de que tenho algumas moedas na carteira -- nenhuma nota, nenhuma -- me faz parar. Recolho duas moedas que representam cerca de metade de meu patrimônio líquido e coloco na mão da agressora, que imediatamente pára de chorar. As duas moedas seriam capazes de comprar no mínimo dois pães na padaria da mesma esquina em que estávamos, mas ela continua parada, o olhar fixo e nulo inexpressando coisa alguma de seu rosto de traços nordestinos. Espera apenas a última presa ir embora, para que possa mais uma vez atacar.

17h38min

De volta a São Bernardo, vemos os carros entrarem, cantando pneus, faculdade adentro. Só carros, nenhum estudante parece caminhar. Os veículos são como que partes inalienáveis de seus corpos, cada um um corpo independente, organizadamente circulando em ambos os sentidos.

Hoje

11h13min

É uma sensação de mansa amargura reconhecer na própria família toda a vulgaridade obscena da elite brasileira. Que é a vulgaridade de todos nós. Que somos nós.

13h

Desço para questionar se minha reclamação sobre os ruídos de um animal canino de raça poodle haviam sido encaminhados na administração. Escuto conversa mole como resposta. Questiono, indago. Só ouço conversa mole em resposta. Sigo insistindo. A administradora, uma senhora gorda, começa e ter um princípio de tremor.

-- Desculpa, mas eu não consigo pensar em mais nada, meu filho morreu semana passada e eu nem estava lá.

Tento de todas as formas sair, mas ainda continuo lá, ouvindo explicações entrecortadas de soluços, por aproximadamente 50 segundos.

13h48min

Três caixas no banco, uma funciona. Três senhoras idosas têm seu atendimento preferencial ignorado.

19h43min

Fazendo exercício aeróbico na esteira, tento me lembrar e organizar tudo. Tentando entender e formar uma seqüência lógica. Me sinto pequeno.

08/06/2006 22:32    | Comentários (8) | TrackBack (0)

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