Comentários sarcásticos, crítica vitriólica e jornalismo a golpes de martelo por Marcelo Träsel


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cuca, lingüiça e delírio em são joão do oeste

O microônibus passava por um pasto. Um dos passageiros gritou para o fundo:

− Quem não conseguir boceta hoje à noite, aqui tá cheio. E vocês viram o tamanho das tetas?

Alheia aos comentários sobre seus atributos físicos, uma plácida vaquinha malhada continuou pastando em um campo de São João do Oeste, Santa Catarina. Cidade de pouco menos de seis mil habitantes, perto da fronteira com o Rio Grande do Sul. Estávamos todos lá para o VII Encontro Internacional da Família Träsel.

vaquinha.jpgA vaquinha malhada, inconsciente dos perigos que a rondavam.

Sim, os descendentes da família Träsel, saída da localidade de Senheim no século XIX reúnem-se em locais tão distantes quanto a gaúcha Arroio do Meio e a argentina Capiovi desde 1997 − eram anuais, passaram a ser bienais. Tudo é sempre regado a muita cerveja, churrasco e pura música pop − o pó-pó-pó-póp da tuba da pandinha alemã.

A diversão começa já no ônibus fretado, lotado na maior parte por agricultores, mas em todo caso praticamente apenas trabalhadores com baixo nível de instrução. Impossível mensurar a quantidade de biscoitos amanteigados e chimarrão consumidos nas oito horas de viagem. Os mais animados, como eu e meus tios, levam sacolas térmicas com cerveja e vão enchendo a cara.

Antes da saída, um dos padres da família e grande incentivador da festa, frei Marcelo, dá a bênção para a viagem. Naquele microônibus estava ainda o padre Rogério, reitor de um seminário na região de Lajeado. E a viagem corre na mais santa paz, embora o calor do Alto Uruguai seja infernal.

São João do Oeste foi destaque por ser a cidade com maior nível de alfabetização do país inteiro. Há uma placa na entrada anunciando o feito. A zona urbana estende-se por no máximo seis quadras de norte a sul e outras seis de leste a oeste. A primeira coisa que chama a atenção é uma belíssima igreja, toda em madeira. A segunda são as ruas com nomes de cidades do Vale do Taquari. Imigração gaúcha.

igreja.jpgA belíssima igreja de madeira, uma das únicas no país.

Na chegada ao nosso local de hospedagem, o Piscina Clube, percebemos que o povo de lá não está para brincadeiras. Muito embora sejamos hóspedes, somos obrigados a pagar o ingresso de R$ 1 para entrar no parque. Há uma piscina, mas logo descobrimos que precisamos pagar R$ 4 por um exame médico que será usado uma única vez. O atendente que fez as reservas esqueceu-se de avisar que era preciso levar todas as facilidades domésticas, de modo que somos obrigados a pagar mais R$ 1 por dois rolos de papel higiênico. Tínhamos a impressão de que a qualquer momento um taxímetro seria instalado em nossos narizes, para cobrar pelo ar.

O assédio às nossas carteiras foi mais do que compensado, no entanto, pelo frisson causado pela presença de alguns exemplares masculinos estrangeiros entre as coloninhas. Éramos recebidos com um mar de sorrisos meio envergonhados, meio marotos − e alguns, meio desdentados − onde quer que fôssemos. Todas casadas e com filhos, infelizmente. A menina que fez nosso exame médico ficou tão vermelha que tivemos vontade de mandá-la para uma reserva apache. Isso que nem pediu para baixarmos o calção, como é praxe − muito embora ela bem que quisesse, a safadinha.

Após uma sessão de relaxamento com o método Träsel™, envolvendo águas termais quentes e cerveja gelada, decidimos ir até a cidade comer alguma coisa e arranjar um baile. No microônibus, fomos brindados com a frase que inicia este relato. Considerando que em pequenas cidades de população religiosa em Santa Catarina não se permitem bailes durante a quaresma, e que a zona mais próxima ficava a uns dez quilômetros, rolar no pasto com a vaquinha começou a parecer uma idéia atraente. Preferimos, no entanto, voltar para o alojamento.

Depois de um quilômetro e meio por uma estrada de chão mal iluminada, decidi levar como lembrança a placa na entrada do Piscina Clube, onde se lê "proibido trazer bebida de casa". Arranquei-a. Quando chegamos perto da recepção, resolvi carregá-la junto às costas. De repente, um gringo sai da escuridão e pede para ver o que tenho nas mãos. Meio bêbado e imaginando se eles têm câmeras instaladas nos cupinzeiros, mostrei a placa:

− Estava caída no chão, lá em cima.
− Então por que não deixou onde caiu? − perguntou o gringo, com cara de poucos amigos e evidentemente duvidando.

Uns gansos ainda tentaram nos atacar no caminho para a cabana.

No dia seguinte, decidimos dormir um pouco mais, evitando a missa, e dispensamos o microônibus até o "centro". Iríamos a pé. Infelizmente, a seca que atinge o sul do país há dois meses resolveu dar um refresco e caiu a maior chuvarada − mais tarde, um orador diria que "se houver seca de novo em 2007, vamos antecipar o encontro para terminar com ela". Graças a um primo mais cara de pau, descolamos uma carona com a proprietária do local, uma das moças que ficavam babando em cima de nós. Fez questão de mostrar onde fica sua casa antes de nos deixar no salão paroquial.

O churrasco foi uma profusão de discursos em dialeto alemão, músicas de bandinha, cuca com lingüiça e cerveja gelada. Uma sucessão de rostos loiros. Povo se divertindo a valer dançando a polonese. É reconfortante ver gente que ainda se contenta com prazeres simples. Há gente que poderia considerar encontros de teuto-descendentes como uma atividade um tanto nazista. Alguns poucos, de fato, o são. Mas trata-se na verdade de reforçar, sobretudo nestes tempos em que tudo que é sólido se desmancha no ar, laços comunitários que sempre existiram entre os imigrantes.

bolao_de_mesa.jpgBolão de mesa é muito mais difícil do que parece.

Tentei ganhar uma jarra rosa em forma de abacaxi jogando boliche de mesa − coisa que nunca vira na vida, bate-se na bola com um pilão, ela corre por um túnel e acerta pequenos pinos −, mas falhei miseravelmente. Tampouco ganhei um pano de prato bordado ou um pacote de arroz na rifa.

A poucas horas da partida, um primo que passáramos a cidade inteira considerando meio viado foi dar uma volta no matinho com uma das meninas que antes serviam o churrasco − vocês têm de ver os músculos dessas mulheres, aposto que carregam uns cinco canecos de cerveja de um litro em cada mão. Não apenas, como na volta ainda beijou outra das moçoilas. Embora tenha sido um tanto humilhante levar um olé de um colono de Cruzeiro do Sul, ao menos comprovou-se que até o momento todos os homens são machos na família.

16 de março de 2005, 3:12 | Comentários (16)



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por daniel galera

 

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