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existe gente interessante em qualquer lugar
Em uma viagem sempre se encontra pelo menos uma pessoa muito interessante, que dá vontade de conhecer mais a fundo. Em Emden, extremo noroeste da Alemanha, conheci a Frau Karin Janssen. Ela é proprietária da pensão im NavTec-Haus e é um doce.
No telefone, ao fazer a reserva, já deu para notar que era ao menos uma senhora muito simpática. Não tinha celular nem prova alguma de que realmente apareceria para tomar posse do quarto, mas ela respondeu "ach!, eu acredito que você vem". Depois engatou em uma longa explicação sobre como chegar à pensão, da qual eu realmente não precisava, mas tentei não pensar nos créditos voando embora do cartão telefônico. Ficou particularmente interessada no fato de eu ser jornalista.
Ao chegar, ela me levou a um quarto parecido com os da casa de uma avó. Não pediu documentos, nem falou nada sobre pagamento. Expliquei que teria de fazer uma reportagem no porto. Na hora ela lembrou: "Ora, mas eu tenho um recorte de jornal sobre o descarregamento de um carro brasileiro aqui. Interessa? Vou pegar." Coincidentemente, era sobre a primeira carga do Fox, justamente o assunto da matéria. Pura sorte. Ela também trouxe uma caixa cheia de livros de história a respeito de Emden.
No dia seguinte, teria de sair às 5h30 para ver o descarregamento no porto. Ao chegar na cozinha, encontrei uma garrafa térmica cheia de café e um bilhete da senhora Janssen me oferecendo boa sorte. Não acreditei.
Esse tratamento VIP e alguns contratempos me motivaram a ficar mais um dia na pensão. Aí, pude conversar melhor com ela e conhecer sua história. Seu marido é engenheiro naval. A família Janssen trabalha com navegação há gerações. Depois de construir de navios na China e nos Estados Unidos, hoje ele se dedica a arranjar financiadores para seu projeto mais querido: um tipo de catamarã cujos flutuadores funcionam como submarinos e o fazem submergir e emergir muito rápido. Sobre a plataforma, ficam chatas com contêineres, que podem ser retiradas por rebocadores. Assim, o navio não precisa entrar no porto para carregar e descarregar, deixando tudo muito mais rápido e barato. Aliás, nem precisa de porto. "Enquanto ele pensa no projeto, eu ponho a comida na mesa", diz a dona da pensão.
Karin Janssen nasceu na China e viveu boa parte da juventude lá. Seu pai, Edmund Fürholzer, era agrônomo e conselheiro de Chiang Kai-Shek. Último de dez filhos, ele foi adotado por um tio que era fazendeiro na África, mais ou menos na região onde hoje fica a Namíbia. Veio a primeira guerra e ele foi convocado para o batalhão de comunicações — aqueles sujeitos que andavam com um telefone nas costas. Perdeu um olho e perdeu a fazenda, porque a Alemanha perdeu a guerra e teve de ceder as colônias aos ingleses. Por isso mudou-se para a China.
Na China, acabou sendo convidado pela Reuters para ser correspondente. Recebia notícias da Alemanha só pelo jornal e ficou entusiasmado com o nazismo. Em uma viagem para lá, juntou-se ao partido. "Ainda não sabíamos sobre a morte dos judeus na época", diz sua filha. Ela também não sabe direito se ele não foi obrigado a se juntar ao partido Nacional-Socialista, como muitos intelectuais na época. Em todo caso, não era um bom nazista e por isso um agente foi enviado à China para verificar sua adesão à ideologia. Chiang Kai-Shek, avisado disso, mandou-o fazer uma expedição ao Tibet.
Edmund Fürholzer conheceu lá os lamas vermelho e amarelo, que dividiam o poder político na época. Tirou centenas de fotos do cotidiano local e na volta escreveu o livro Arro! Arro!. A expressão significa "Amigo! Amigo!"; ao mesmo tempo, os tibetanos estendiam um lenço de seda branca e botavam a língua para fora. O objetivo era mostrar que não tinham nada nas mãos nem na língua contra a pessoa.
Quando a situação na China ficou ruim, com Mao Tse-Tung, Fürholzer fugiu com a família para os Estados Unidos, onde se tornou lingüista na Universidade da Califórnia. Depois voltaria ao Tibet para comparar os habitantes locais com os nativos norte-americanos, colaborando na pesquisa das migrações da Ásia para a América pelo estreito de Behring.
Já a Frau Janssen casaria com Herr Janssen e voltaria à China e aos Estados Unidos para construir navios. Sua casa é lotada de livros sobre culturas diversas e de mapas nas paredes. É uma das raras pessoas que conheço a ter mostrado um interesse quase vital em saber como é a vida em outros lugares do mundo. Por exemplo, no Brasil. Talvez por isso tenha me dado tão bem com ela. Na hora de ir embora, ainda me brindou com um enorme elogio: "Você parece uma pessoa que viaja porque PRECISA conhecer o mundo, não porque precisa de desafios." Devolvi dizendo que ela é uma pessoa extraordinariamente boa. "Eu tenho filhos morando longe daqui e alguém sempre ajuda a eles. Por isso eu procuro ajudar aos filhos dos outros", ela me respondeu.
Espero um dia poder voltar a vê-la.
b a l a
kuro5hin
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