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Primeira parte: o vôo
Promover o avião como um meio de deslocamento rápido é mais uma dessas falácias do pessoal do marketing. Eles se aproveitam do fascínio que todo ser humano tem por voar (ou por viajar a 750km/h) e camuflam a parte ruim do processo. Cada minuto economizado no deslocamento aéreo é minuciosamente desperdiçado nos trâmites e burocracias do aeroporto. No fim, ir de ônibus dá quase na mesma.
Sob certo aspecto, há uma questão psicológica nessa demora em aeroportos. Culpado por criar uma máquina tão rápida e eficiente como o avião, o homem criou o aeroporto, para evitar que o prazer da viagem fosse pleno.
Quando a viagem é internacional – meu caso - a coisa piora, com a presença da alfândega e todos aqueles formulários amedrontadores. E isso que para entrar na Argentina não precisa nem de passaporte, basta carteira de identidade. Fiquei imaginando como deve ser entrar nos Estados Unidos ou em Praga.
Ainda assim, não se pode dizer que o processo é desorganizado. É chato, mas muito organizado. O que faz sentido, tenho que admitir. Nos momentos que antecedem meu lançamento a 12 quilômetros de altura, gosto de sentir que todo o sistema relacionado ao vôo foi criado e é mantido por pessoas extremamente chatas, que o mantém funcionando com perfeição em todas as etapas, do chek-in às turbinas.
Quanto ao avião em si, uma decepção. Até nas séries de TV com mais restrições de custo eles parecem mais bonitos, mais mágicos. Não passa de um grande tubo com ar condicionado e poltronas estofadas. Um T9 que voa, em resumo.
As poltronas, aliás, têm uma reclinação pífia, tão minúscula quanto a distância entre elas, seja para frente ou para os lados.
(nota: sei que estou julgando com uma amostra pequena, mas é assim que a humanidade faz sempre, com tudo. E gosto de lembrar que sou parte da humanidade quando me convém.)
Mas tudo isso se torna detalhe quando o imenso pedaço de lata arranca para a decolagem. E qualquer tipo de desconforto desaparecer por completo quando o avião levanta vôo e tudo começa a ficar pequenininho lá embaixo. Sorte que não tem vento no rosto, ou eu não me conteria em escrever algumas frases bem piegas sobre a sensação de liberdade.
Assim que o avião mergulhou nas nuvens e a vista na janela foi tomada por aquele branco fofo, decidi que era hora de dormir. Pena as aeromoças não estarem de acordo. Primeiro, todos aqueles alertas, em vários idiomas (o avião termina a decolagem, tudo parece bem e elas vêm nos lembrar de todas as tragédias que podem ocorrer), depois tinha que preencher um formulário, então veio o lanche de bordo (bem melhor do que dizem por aí), e aí já estava quase na hora de pousar.
Tanta rapidez me surpreendeu, diga-se. De dentro do avião é difícil mensurar a que velocidade estamos. Meu cérebro, acostumado ao transporte terrestre, não processou muito bem a situação. Quando o comissário avisou que estávamos a quatro minutos do território argentino, espantei-me, e perguntei a mim mesmo:
- Ué, mas quando passamos por Canoas que eu não vi?
Pouco tempo depois, já era possível ver um imenso volume de água, e colada nele, Buenos Aires. Grande, muito grande. E plana. Parecia passada a ferro.
Um pouso tranqüilo, algumas burocracias legais e chega a hora mais esperada: pegar a bagagem na esteira.
Desde criança nutro um grande fascínio por esteiras de aeroporto. Na televisão, ou mesmo à distância, sempre parece que as pessoas vão lá, pegam a mala e saem, sem nenhum controle.
- Ah, só gente rica anda de avião, ninguém ia roubar uma mala – eu pensava.
Porém, no fundo, claro, eu acreditava que algum controle tinha que ter.
Mas não tem. É um genial sistema baseado não na confiança, mas na desconfiança. Ninguém vai tentar roubar uma bagagem sabendo que o dono dela pode ser o senhor de bigode ali do outro lado, ou a gorda bonachona de vestido florido.
Catei minha companheira com alças e resolvi dar uma passada no free shop antes de sair. Estava dando aquela olhada descompromissada quando um senhor se aproximou de mim e perguntou, em espanhol, se eu ia comprar algo ali. Antes que eu pudesse responder, ele pediu um favor e mostrou um envelope com dólares.
Caramba, dez minutos em solo estrangeiro e já estou sendo vítima de um golpe? Já descobriram a ingenuidade que se esconde atrás da minha espessa barba?
Isso, e muito mais, eu conto na segunda parte da história.