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Episódio de hoje: o dia em que entalei num bueiro, no Centro de Passo Fundo.
Caminhar distraidamente sempre esteve entre as minhas características mais notórias. Uma vez decorado e assimilado um caminho, eu passava a percorrê-lo com a mente a dezenas de milhas dali. Ou, em alguns casos, com o olhar e a atenção totalmente focados em algum elemento aleatório do percurso.
No fatídico dia, o elemento era uma garota. A coisa mais óbvia possível para distrair alguém, mas sou mesmo uma pessoa previsível, não poderia ser diferente. Além disso, uma mulher pode ser definida, acima de tudo, como uma quantidade de massa capaz de atrair olhares e paralizar funções cerebrais básicas.
Pois vinha eu andando quando avistei aquele conjunto de contornos suaves e agradáveis caminhando na mesma direção que eu. Enquanto meus olhos, imaginação e hormônios juvenis convergiam para as reentrâncias e saliências daquele corpo, meus pés seguiam firmes na função de caminhar: esquerdo, direito, esquerdo, direito, nada demasiado complexo, sabemos.
O que meu pé esquerdo não esperava é que, ao se lançar instintiva e mecanicamente para frente pela milionésima vez, o chão não estaria lá.
Chão não é a definição mais precisa. Estávamos, meus pés e eu – com exceção dos já citados olhos, imaginação e hormônios, que naquele momento experimentavam toda a selvageria do ser – em uma esquina, bem em frente a um bueiro, para onde, aliás, meu pé esquerdo se lançou.
Um bueiro não é chão, mas também não é buraco. É um composto de barras de ferro e espaços vazios, logo, uma superfície sobre a qual é possível desenvolver o caminhar sem problemas, mesmo não contando com os olhos, a imaginação e os hormônios para ajudar. Além disso, por mais que eu esteja longe de ser um homem pujante, as frestas entre as barras eram bem menores que meus pés.
Ou seriam, se uma delas não estivesse torta, o que ampliava um dos vãos consideravelmente e deixava o bueiro de boca aberta, salivando, esperando pelo meu apavorado pé esquerdo.
Bom, imagino eu que ele deve ter se apavorado. Se lançar cheio de vontade ao chão e perceber no meio do caminho, em pleno ar, que ele não está lá, deve ser assustador.
Sim, era apenas uma entre umas vinte barras que estava torta, provocando um buraco não tão grande assim, porém suficiente pra receber todo o meu azar. Foi exatamente lá que meu pé se depositou.
É difícil descrever a sensação de pisar no nada. Lembra muito aqueles momentos em que a gente está andando e não vê um pequeno degrau, e acaba pisando em falso. Mas é bem pior, porque tu fica esperando o chão e ele não vem nunca. Minha perna mergulhou no bueiro até acima do joelho, e só não foi mais porque minha coxa era grossa demais pra seguir rumo ao subsolo também.
Visualize a cena: em uma esquina razoavelmente movimentada, um adolescente se apresenta de cócoras, com uma perna enfiada até acima do joelho no bueiro da rua e a outra toda dobrada pro lado de fora.
Tudo bem, era apenas uma rua razoavelmente movimentada de Passo Fundo, mas, convenhamos, mesmo que fosse uma nada movimentada de Cutunduva, a situação era um clímax de constrangimento.
E o pior: meu joelho, movido pelas leis da física, aceleração, gravidade, essas coisas, passou pelas barras, mas é óbvio que na hora de voltar ele entalou. E eu entalei junto.
A cena só não era de todo hilariante porque eu corria risco de vida. Um carro poderia tranqüilamente virar a esquina sem me ver e passar por cima de mim, sem dó. Pobre adolescente, estava de cócoras entalado no bueiro, nem teve tempo de reagir, diriam os curiosos que se aglomerassem pra ver a cena, cobrindo a boca com um lenço, como se costuma fazer em momentos de choque.
Assim que meu cérebro voltou de Sodoma e se deu conta da situação, forcei minha perna e, não sem dor, ela emergiu à superfície. Levantei, ainda meio cambaleante, e segui minha caminhada.
Como tudo na vida tem um lado bom, sempre que me lembro desse dia agradeço aos céus por um pequeno detalhe: a menina que causou o acidente estava caminhando na mesma direção que eu e não viu nada do que aconteceu.
Se bem que “quando eu te vi, fiquei sem chão” não seria uma má cantada.