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"Cada cultura faz uma representação de si mesma. Nós, os gaúchos, gostamos de nos ver como cultos, politizados, pontuais, mais honestos em política que o resto do Brasil e objetivos. Além, adoramos pensar que temos as mulheres mais bonitas do país."
HUMORES
Prossigo as minhas investigações antropológicas e turísticas sobre as identidades culturais. Numa mesa do bar Conversa Fiada, no Leblon, um grupo interdisciplinar de especialistas, formado por bebedores de chope do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, debateu as seguintes questões: o que é um carioca? O que é um gaúcho? Ou, na formulação de um dos nossos estudiosos do tema: existe o gaúcho? Existe o carioca? Em princípio, não. Tanto que o Rio de Janeiro tem a Secretaria das Culturas. Assim, no plural.
Que tem isso a ver? O plural desmonta a noção moderna de identidade fixa. Existem cariocas, uns diferentes dos outros, e gaúchos. Curiosamente, enquanto no Rio Grande do Sul, considerado muito bairrista, se diz 'os gaúchos pensam isso' ou 'os gaúchos são assim', no Rio de Janeiro, pretensamente mais cosmopolita, diz-se 'o carioca é, 'o carioca pensa', 'um carioca não gosta disto ou daquilo'. Esse singular, contraditório, soa com uma ato falho. Apesar de se apresentar como múltiplo, 'o carioca' gosta de se ver como único, como portador de uma série de atributos homogênios e definidores de uma identidade clara, límpida e orgulhosamente defendida.
Cada cultura faz uma representação de si mesma. Nós, os gaúchos, gostamos de nos ver como cultos, politizados, pontuais, mais honestos em política que o resto do Brasil e objetivos. Além, adoramos pensar que temos as mulheres mais bonitas do país. 'O carioca' gosta de se ver como descontraído, inteligente, livre, bem-humorado e sem frescuras. Além de garantir que no Rio de Janeiro tudo se mistura, asfalto e morro, pobres e ricos, cães e donos, chiques e bregas, gostosas e barangas, etc. Afinal, tudo acabaria em chope, pizza, praia, funk, pagode e futebol.
As diferenças, porém, sempre acabam aparecendo. A mais clássica é entre subúrbio e zona Sul. Um dos maiores insultos dito contra alguém é 'suburbano'. Os franceses do interior costumam dizer, com ar de desdém, aos visitantes deslumbrados com a chamada Cidade-Luz, que 'Paris não é a França'. Leia-se a verdadeira França, a França autêntica, a França profunda e genuína. Esse fenômeno se reproduz no Rio, onde alguns cariocas afirmam sem hesitar: 'O Rio não é Copacabana, Ipanema e Leblon.' Leia-se o verdadeiro Rio, o Rio autêntico, o Rio berço do samba e da cultura popular. Claro que sempre se pode fazer um programa no Morro da Mangueira ou uma incursão à Tijuca. Mas o problema é que ninguém quer passar férias no Méier ou no Andaraí. Nem na Rocinha ou no Vidigal.
Um dos nossos debatedores cariocas lançou uma tese bastante polêmica: 'A zona Sul sonha em ser zona Norte'. O contra-argumento de que a zona Norte sonha em ser zona Sul foi refutado como preconceituoso. A verdade pós-moderna recusa o 'isto ou aquilo' e privilegia o 'isto e aquilo'. Zona Sul e zona Norte se irrigam, alimentam, contradizem e complementam. Na eterna guerra pela identidade cultural, ou seja, para definir o que nos coloca num grupo e nos exclui de outro, um dos nossos especialistas revelou mais uma linha de separação entre, por exemplo, o Rio de Janeiro e São Paulo: o humor. Foi lançada uma guerra santa contra o humor paulista, que seria representado por José Simão e Diogo Mainardi.
Eu sou capaz de entender o humor judaico, inglês, francês e até argentino. Compreendo de Woody Allen a Michel Houellebecq, passando por Arnaldo Jabor e Pedro Bial no BBB, mas não consigo entender o humor do Tutty Vasques, um cara que se chama Alfredo Alguma Coisa e assina com nome de sem o bom gosto do hortelã.
Pois Tutty seria a principal referência do humor carioca contra o mau humor paulista. Diogo Mainardi cometeu o pecado mortal de afirmar que carioca é bobo porque aplaude até o pôr-do-sol. Simão não foi tão longe, mas nasceu no estado errado. O humor carioca, tipo Casseta & Planeta, é complexo e costuma explorar temas delicados como 'pum' em elevador e expressões polissêmicas como 'Jacinto Leite Aquino Rego'. Dado que estou no Rio de Janeiro, defendi o humor paulista.
Se estivesse em São Paulo, faria o contrário. 'O' carioca é boa gente e adora gaúcho para duas coisas: humorista e governador. Sem contar que, ufanista, acredita ser o que afirma que é. Nada mais tocante. Até parece gaúcho. Agora, em termos de mulher, o Rio nos dá um banho. Admitam.
Juremir Machado da Silva
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