Menos, Suplicy
Gosto do senador Eduardo Suplicy e de seus ataques de excentricidade. Inclusive presenciei a memorável interpretação que ele fez da letra da música Homem na Estrada, dos Racionais MC´s, no auditório da PUCRS, lá por 2001. Na ocasião, em meio a um debate com os senadores Jefferson Peres e Pedro Simon, Suplicy leu a letra durante mais de cinco minutos, imitando o ruído de todos os elementos descritos ali – inclusive imitando um cachorro, para espanto geral do público.
Mas hoje Suplicy exagerou. Imitar cachorro em debate entre senadores tudo bem, mas a sua "Carta ao MST" publicada hoje na Folha de São Paulo é para matar. Começa com um "Meu Caro João Pedro Stédile" e intercala uma séria de patetices, criticando a depredação da Aracruz e ao mesmo tempo passando a mão na cabeça do MST, como um pai que diz "não faça mais isso, menino malvado". Os piores trechos são "... bem sei que as companheiras da Via Campesina (...) agiram em solidariedade aos índios guaranis (perseguidos pela Aracruz)" e o "o MST consegue obter muito mais apoio do povo brasileiro para sua causa quando utiliza meios pacíficos, não-violentos e de respeito aos seres humanos".
De certa maneira, Suplicy resume o eterno incômodo do PT em lidar com o assunto MST. Incômodo que faz com que o próprio ministro do desenvolvimento agrário não consiga criticar o MST nunca, mesmo quando o deve fazer, na condição de ministro de Estado. Algumas coisas nunca mudam no PT.
Leia na íntegra:
Carta ao MST
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY*
Meu caro João Pedro Stédile, da Coordenação Nacional do MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra):
Com o sentimento de quem tem sido solidário ao MST desde a sua fundação,
como amigo da causa da reforma agrária e da realização de maior justiça
em nosso país, gostaria de externar minha sincera opinião sobre os
últimos acontecimentos em Porto Alegre (RS). Acredito que o MST consegue
obter muito mais apoio do povo brasileiro para sua causa sempre que
utiliza meios pacíficos, não-violentos, e de respeito aos seres humanos
e ao que tiver sido construído honestamente por outros.
Falo isso por causa do episódio ocorrido na semana passada, quando as
companheiras do Movimento de Mulheres Camponesas e da Via Campesina
destruíram as mudas de eucaliptos e as instalações do laboratório da
Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul.
Bem sei que elas desejavam protestar contra um modelo de agronegócio que
o MST tem criticado, uma vez que florestas homogêneas de eucaliptos para
a produção de celulose podem prejudicar a biodiversidade. Também sei que
essa atitude foi uma reação à destruição da aldeia indígena dos guaranis
por tratores da Aracruz no Espírito Santo. Ou seja, agiram em
solidariedade aos índios guaranis.
Reitero, entretanto, a recomendação que fiz quando, convidado pelo MST,
em 10 de julho de 1999, administrei uma aula na Unicamp (Universidade
Estadual de Campinas) para mais de mil jovens -de quase todos os Estados
brasileiros- pertencentes ao movimento.
Dei de presente àqueles jovens a tradução que eu mesmo fiz de uma das
mais belas orações da história da humanidade: "Eu tenho um sonho", de
Martin Luther King Jr., feita em 28 de agosto de 1963, em Washington, no
dia em que foram comemorados os cem anos da abolição da escravidão nos EUA.
Naquela época, Luther King Jr. se preocupava com a necessidade premente
da aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei dos Direitos Iguais de
Votação. Em muitos Estados do Sul dos EUA, não era permitido aos negros
freqüentar os mesmos hotéis, restaurantes, escolas e banheiros ou usar
os mesmos ônibus e calçadas que os brancos. Os negros nem sequer eram
considerados cidadãos americanos, pois, em diversos Estados, não tinham
o direito de votar, o que gerou movimentos de revolta, quebra-quebras e
incêndios em inúmeras cidades.
Foi então que Martin Luther King Jr. conclamou seus compatriotas a
seguirem os exemplos históricos de Mahatma Gandhi e outros, que
realizaram movimentos assertivos não-violentos para alcançar objetivos
importantes e difíceis, como o da independência da Índia, em 1947.
Naquele dia, perante mais de 200 mil pessoas, disse Martin Luther King Jr.:
"Esse não é o tempo de nos darmos ao luxo de nos acalmarmos ou de tomar
a droga tranqüilizadora do gradualismo. Agora é a hora de tornar reais
as promessas da democracia (...) agora é o momento de fazer da justiça
uma realidade para todas as crianças de Deus. Seria fatal para a nação
não perceber a urgência do momento".
E, adiante, disse: "Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo
do cálice da amargura e do ódio. Precisamos sempre conduzir nossa luta
no plano alto da dignidade e da disciplina. Nós não podemos deixar nosso
protesto criativo degenerar em violência física. Todas as vezes -e a
cada vez-, precisamos alcançar as alturas majestosas de confrontar a
força física com a força da alma".
Pouco tempo depois desse discurso, o Congresso norte-americano aprovou
-e o presidente Lyndon Johnson sancionou- as Leis dos Direitos Civis e
dos Direitos Iguais de Votação.
O MST tem sido muitas vezes criativo. E, assim, granjeou forte apoio do
povo para a justa causa da reforma agrária -quando, por exemplo,
organizou as marchas para Brasília em memória das vítimas do massacre de
Eldorado do Carajás ou em memória da irmã Dorothy Stang, morta no ano
passado pelos interesses do latifúndio.
Para mostrar sua solidariedade aos índios guaranis, tenho a convicção de
que as mulheres da Via Campesina poderiam -e podem ainda- escolher uma
forma pacífica, criativa, utilizando muito mais a força da alma do que a
força física.
De outra forma, daremos razão aos que, em pleno século 21, preferem
utilizar os instrumentos bélicos em vez dos instrumentos civilizatórios
do bom senso e da inteligência.
* Eduardo Matarazzo Suplicy, 64, doutor em economia pela Universidade
Estadual de Michigan (EUA), professor da Eaesp-FGV, é senador da
República pelo PT-SP. É autor do livro "Renda de Cidadania - A Saída é
pela Porta" (Cortez Editora e Fundação Perseu Abramo).
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