Cardoso transtorna Juremir

Nunca perdi totalmente o meu espírito de repórter e de antropólogo. Aí, eu tinha terminado de ler 'Cavernas & concubinas' e de entrevistar o autor, o Cardoso. Bacana! Foi um pouco depois de ter lido 'A vida sexual da mulher feia' e de ter entrevistado a autora, a Cláudia Tajes, o que me fez reler Michel Houellebecq, que poderia ser o mestre deles, mas não foi, pois, segundo me disseram os dois, eles não o leram. Mas isso nada tem a ver com a história que vou tentar contar. Certo é que resolvi voltar às ruas de Porto Alegre * como no tempo em que colhia material para reportagens, que depois se transformou num livro, 'A noite dos cabarés' * para sentir o 'espírito da cidade'. Fui ver o pôr-do-sol no Gasômetro. Dei de cara com uma rapaziada, tipo hip-hop, entendem?, com bonés virados para trás, calças pela canela, tênis enormes, o circo todo. Não longe deles, havia um bando de quarentões vidrados no 'astro-rei' ou coisa que o valha. Eu estava ali empurrado pelo Cardoso. Então, um dos guris, que até podia ser primo do Cardoso ou meu sobrinho, melhor, um daqueles personagens do Cardoso, me olhou como se eu fosse um deputado, apesar da falta da gravata, e perguntou assim na bucha:


'Tá no nosso bico, tio?'

'Bico? Qual é, meu? Estou vendo o pôr-do-sol.'

'Conta outra, tio, tu tá é atrás dum beck?'

'Atrás de quê? Nem beque nem volante, meu, já disse, estou aqui para ver o pôr-do-sol, não posso, é proibido?'

'Fala a verdade, tio, tu qué um beck?'

'Que que é isso, beque?', eu tinha lido no Cardoso, mas, diante dos fatos, na real, já estava confuso.

'Isso, tio', disse o guri, mostrando o que vocês podem imaginar com a maior tranqüilidade dos novos tempos.

'O pessoal chamava isso de *unzinho*', eu disse, para não parecer tão careta, embora me sentindo muito estranho.

'Ah, tio, isso era antigamente. Meu pai fala assim.'

'Não me interessa. Posso ver o pôr-do-sol em paz?'

'Tu sabe esmurrugar, tio?', perguntou o carinha.

'Capaz! Não vês que essa não é a minha praia?'

'Pô, tio, qual é, não vaza? Os tio ali, ali ó, os de oclinhos, da tua idade, mandam bem pra ca...ramba, experimenta só, esse troço é uma paulada no melão.'

Fiquei atônito. Eu tinha lido essa expressão, 'paulada no melão', num conto legal do Cardoso. Mas era literatura. Bem, não estou querendo comprometer o Cardoso, que também deve ser um excelente repórter e ter espírito de antropólogo. Certo é que arrepiei mesmo e numa boa:

'Tá, louco, guri. Tô fora dessa, não enche.'

'Pô, tio, tá limpo. Os porco não tão nem aí.'

'Tá limpo, mas pode ficar muito sujo e só quero ver o pôr-do-sol, dá licença, ou tenho de pagar ingresso?'

'Fica frio, tio, a gente só tá te sacaneando.'

'Valeu! Agora me deixem em paz, vai.'

'Certo, mano, mas só se tu contá uma coisa, tá ligado', falou outro. 'Tu já enroscou um beck na vida?'

Droga, será que eu estava conversando com um personagem do Cardoso ou plagiando o Cardoso ou me transformando em personagem do Cardoso? Além do mais, o pôr-do-sol estava atrasado. Resolvi bater em retirada com o que ainda me sobrava de bom senso e de gírias de museu.

'Beleza, rapaziada, vô nessa. Foi tri.'

Eles riram como quem diz, esse não tem mais jeito, é caso perdido. Um deles, mais gordinho, falou por delicadeza, acho, ou pena, 'massa, tio'. Foi nesse momento que vi se aproximar de mim a todo vapor uma mulher num livre balanço a caminho do rio. Ela avançava com aquele gingado característico do Ariel Sharon (saúde para ele) a caminho de um encontro de cúpula com os palestinos. Tremi. Era uma superbaranga liberada, bem resolvida, cheia de confiança, em plena marcha na minha direção. Tremi. Ela chegou em mim como um cargueiro atracando no porto. Falou:

'Cê também curte o pôr-do-sol do Portinho?'

'Pois é, fazia tempo que eu não vinha pra esse lado.'

'Bacana! Eu me amarro no pôr-do-sol de PoA.'

Fiquei na minha. Aí ela foi realmente fundo:

'Teve um tempo em que eu vinha escutar Belchior aqui.'

'Sei, ainda somos os mesmos e o escambau.'

Eu já estava até admirando o seu silicone. Afinal, somos todos cyborgs. Mas aí ela foi realmente longe demais:

'Que tal comer quiche e folhas verdes na Padre Chagas?'

Minha resposta foi curta e seca:

'Tudo tem limite'.

Do Correio do Povo.

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