Trombeta do fracasso
Os editoriais de capa da Folha de S. Paulo têm a fama de trombetear o fracasso iminente e amaldiçoar a vida do objeto de suas acusações. A família Frias não tem o costume de ser frívola para usar esse recurso e expor suas opiniões. Entre os casos mais famosos dos últimos 25 anos, estão os textos a favor do então presidente eleito Tancredo Neves – foi para o vinagre dias antes da posse; a crítica à invasão da Polícia Federal à redação do jornal feita pelo ex-presidente Fernando Collor e o pedido de renúncia ao mesmo, anos depois. Hoje, a Folha publicou na primeira página outro desses editoriais. Dessa vez, contra o governo petista, sob o título de Abuso de poder(para assinantes):
"Da Lei da Mordaça contra o Ministério Público ao abortado projeto de um Conselho Nacional de Jornalismo, da tentativa de expulsar do país o correspondente do jornal "The New York Times" aos sucessivos embaraços antepostos à ação das CPIs, o governo Lula deu mostras de que convive mal com a liberdade de imprensa e com a procura da verdade (sic). Ultrapassou, contudo, o terreno das propostas legislativas desastrosas, como ultrapassou também o terreno das bazófias, chicanas e do cinismo militante, para se aventurar na prática da chantagem e do abuso de poder."
Tancredo Neves
Editorial - Que seja uma democracia melhor, 16 de janeiro de 1985
Que seja uma democracia melhor
A eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República marca o fim de um ciclo na vida política brasileira. Se o momento é o da valorização da democracia, e da esperança de implantá-la em breve, não se trata contudo de simplesmente virar uma página na História do País, na recusa a encarar de frente o que foi o período autoritário e a avaliá-lo com maturidade. Sua memória não pode desaparecer na cômoda impressão de que, hoje, os desmandos e práticas condenáveis que o caracterizaram não seriam mais concebíveis, ou de que são felizmente coisa do passado.
O sistema que subtraiu aos cidadãos seus mais elementares direitos, e fez das decisões sobre os destinos do País um assunto de que só uns poucos podiam participar, tem origem numa prática política e numa ideologia pelas quais toda a sociedade, e não só os que desencadearam o movimento militar de 64, teve responsabilidade. As divergências políticas nunca tiveram, no instável período de democracia vivido na história republicana, o caráter de uma discordância civil, a ser tratada entre iguais na busca de uma solução pelas vias da lei e da democracia. Sempre prevaleceu a idéia de que esta é apenas uma situação conjuntural, que só interessa preservar quando está a nosso favor; sempre se viu na opinião oposta a contestação radical, a ameaça, e nos atos do adversário um intuito secreto que só a força poderia bloquear.
Apenas um passo, e os cidadãos brasileiros passaram a ser considerados - e as eleições pelo Colégio são ainda consequência dessa concepção - como incapazes de tomar decisões adultas, despreparados para a democracia, desastrados quando se empenhavam em governar o País. Veio a tutela militar.
Mas o autoritarismo não significa apenas as violências, as prisões políticas, a tortura, o exílio, nem somente os casuísmos, a ojeriza ao voto popular e às mobilizações de massa. Também se enraizam aí - nessa desigualdade básica com que divide os cidadãos entre os que têm sensatez e os que não têm - o contumaz desrespeito à opinião pública, o desprezo à memória dos cidadãos, o descompromisso com qualquer idéia da qual não se possa tirar imediata vantagem pessoal, o uso sistemático da desinformação e do segredo.
Em tudo isso há um autoritarismo político que deve ser enterrado para sempre. Para tanto se faz necessária a participação de todos os cidadãos numa defesa da democracia que transcenda as injunções do momento ou o desacordo passageiro com o governo. É preciso restituir o Brasil aos brasileiros, e nisso todos estão de acordo; ninguém é mais privilegiado do que os outros em seu entendimento do que é bom para o País.
A eleição de Tancredo de Almeida Neves, mineiro de 74 anos, para a Presidência da República, com 480 votos no Colégio Eleitoral contra 180 dados a seu oponente Paulo Salim Maluf, paulista de 53 anos, desatou a primeira festa política que se realiza simultaneamente em todo o País, do plenário do Congresso Nacional às ruas de Brasília e de Norte a Sul do Brasil - espetáculo só visto antes em Copas do Mundo.
A festa começou, em Brasília, ao raiar do dia: já havia entusiasmados manifestantes nos jardins do Congresso e nas imediações da residência de Tancredo. Na Superquadra Sul 206. E explodiu às 11h35, momento em que o deputado João Cunha (PMDB-SP), 45, deu a Tancredo o voto número 344, suficiente para garantir a vitória.
O presidente eleito acompanhou a votação no auditório Petrônio Portella, no Senado, ao lado de governadores da Aliança Democrática. Gérson Camata, do Espírito Santo, deixou o Congresso e voltou a seu Estado após ser informado de que pelo menos 93 pessoas haviam morrido de madrugada na favela do Tabuazeiro, em Vitória, devido a um deslizamento provocado pelas fortes chuvas.
Proclamado o resultado (houve nove ausências e dezessete abstenções), Tancredo fez o discurso da vitória, no qual se comprometeu a promover a "organização institucional do Estado", convocou todo o povo brasileiro "ao grande debate constitucional" e afirmou que a Constituição "não pode ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo".
O ex-governador mineiro reafirmou dois compromissos: "Esta foi a última eleição indireta do País; venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do povo." Prometeu, ainda, combater a inflação "desde o primeiro dia" e "promover a retomada do crescimento". Tancredo garantiu que toda a política econômica do futuro governo "estará subordinada a esse dever social", para acrescentar: "Enquanto houver, neste país, um só homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras, toda a prosperidade será falsa."
Antes do discurso, logo após a proclamação, Tancredo recebeu telefonema de cumprimentos do presidente Figueiredo, do hospital em que está internado no Rio. Tancredo agradeceu e retribuiu, desejando "muitos anos de vida" ao Presidente, que completou ontem 67 anos. Paralelamente, Figueiredo deu ordens para que sejam colocados à disposição de Tancredo, como presidente eleito, os serviços de segurança e apoio logístico em suas viagens. O esquema entrará em funcionamento já na viagem que o eleito fará ao Exterior, possivelmente a partir do dia 23. Figueiredo também reiterou a oferta da granja do Riacho Fundo, atualmente sem utilização, para que Tancredo nela resida até a posse, no dia 15 de março. Hoje, às 15 h, no palácio do Planalto, o Presidente receberá a visita protocolar de seu sucessor.
Paulo Maluf, apesar de derrotado, não deixou de sorrir e até se proclamou "vitorioso", por entender que sua candidatura "garantiu o processo político", como disse no discurso com que encaminhou a votação em nome do PDS. E, pouco depois do telefonema do Presidente a Tancredo, apareceu no auditório em que o vencedor acompanhou a votação, deu-lhe um forte abraço e lhe desejou muitas felicidades.
Fernando Collor
Editorial- A escalada fascista, 24 de março de 1990
Assassinos da ordem jurídica, anunciadores do tumulto fascista que se desencadeia sobre a sociedade brasileira, esbirros de uma ditadura ainda sem nome - "Era Collor"? "Brasil Novo"? - invadiram ontem a Folha de S. Paulo. Este fato culmina a série de agressões, de arbitrariedades e de violências que, em nome do combate à inflação, configuram um clima de terrorismo de Estado só comparável ao dos períodos mais infames e vergonhosos da história brasileira.
Esta Folha, que criticou duramente a candidatura Fernando Collor - como, aliás, todas as outras -; mas que aprovou a audácia do presidente na edição das medidas econômicas, vê essa audácia transformar-se em prepotência e tirania; vê nos apelos do chefe de Estado aos "descamisados", nas ameaças que profere contra a livre iniciativa, na arrogância pretensamente incontrastável de suas atitudes, na precária corte de bajuladores que se acanalha à sua volta e no espetáculo de desorganização política, de obscurantismo e mistificação que se estabelece em seu governo, os sinais inequívocos, alarmantes e inaceitáveis de uma aventura totalitária. Não se agrediu um jornal. Agrediu-se a democracia. O chefe de Estado não parece ver limites para seu messianismo; este se constrói na arbitrariedade, sustenta-se na ignorância, mantém-se pela força, prossegue no arbítrio: é o momento de dizer basta.
A democracia brasileira não tolera aspirantes a Ceausescu ou versões juvenis de Mussolini. Aberta, como qualquer empresa, à fiscalização das autoridades, esta Folha não aceita intimidações grosseiras nem ameaças policiais. O governo federal investe na subversão das leis e na destruição das liberdades políticas. A escalada repressiva terá de ser interrompida: mais uma vez, quando já parecia consolidado o processo de transição para a democracia, cumpre lutar contra os inimigos da liberdade.
Editorial - Renúncia já, 30 de junho de 1992
Com rapidez vertiginosa, os desdobramentos do caso PC Farias vieram a atingir o próprio cerne do governo. A sociedade brasileira assiste, angustiada e estarrecida, ao completo colapso da credibilidade presidencial.
O presidente Collor não possui, hoje, condições de governar o país. A questão deixa de incidir exclusivamente sobre os aspectos éticos de sua conduta à frente do governo. Sobre estas, recaem as mais fortes suspeitas; trata-se ainda de esclarecer com rigor e isenção o grau de seu envolvimento com os escândalos que, dia a dia, repetem-se e se avolumam, para indignação da opinião pública. Mas o problema deixou de ser apenas jurídico ou moral. Passou a ser político. Num momento de crise econômica e social profunda, o país não tem governo.
Temos, na Presidência da República, uma figura acuada. A sociedade não mais confia em sua palavra. Não mais espera do presidente nenhuma atitude.
Nenhuma atitude, exceto a da renúncia.
Trata-se da única alternativa capaz de assegurar de imediato a governabilidade do país. A crise chegou a seu ponto extremo. Não é por oposicionismo sistemático que esta Folha vê, na renúnica do presidente, um imperativo político incontornável. Às primeiras revelações de irregularidades no governo Collor, feitas pela Folha, segue-se, hoje, uma verdadeira avalanche de denúncias e evidências, veiculadas por praticamente todos os órgãos de opinião; imerso no escândalo, o Executivo perdeu o crédito da sociedade.
Collor não consegue mais governar. Que renuncie. A Constituição prevê, em caso de renúncia do presidente, a posse de seu vice. Este ponto é inquestionável. Caberá a Itamar Franco o desafio de conquistar sustentação política para o exercício pleno do cargo, mostrando-se em sintonia com as exigências de modernização que se colocam para o país. Foi o papel de Collor, aliás, enfatizar um programa de mudanças hoje consensual na sociedade, mas ainda a ser posto em prática.
A gravidade da atual crise política impõe, acima de tudo, um espírito de máxima serenidade e de respeito aos mecanismos legais. Não é momento para exaltações, acertos de contas imaginários ou paixões ideológicas. Não se ignoram os pontos de atrito que, por diversas vezes, opuseram esta Folha ao presidente da República. O que se coloca, neste instante, é algo de bem mais alto do que divergências conjunturais. Trata-se da governabilidade do país. Trata-se de encerrar, da forma mais rápida e indolor possível, uma situação insustentável. O país precisa de governo. Precisa de um presidente. Já deixou de reconhecer, em Fernando Collor de Mello, uma figura capaz de atender a essa necessidade. A superação da crise exige sua renúncia.
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