Corrupção na alma

Sempre achei meio patética a crença nacional de que o país vai mal por causa da classe política e sua desonestidade. Claro que a classe política é corrupta, mas os 300 picaretas de Brasília não passam de uma amostra bastante significativa da população. Esse papo de que temos um povo pobre e trabalhador é balela. Somos corruptos e desonestos, em todas as camadas da sociedade. Sempre penso nisso quando vejo essa campanha da MTV – para citar um exemplo – dizendo para "preparar os tomates e os ovos" contra os políticos. O publicitário cool da MTV que fez a tal vinheta provavelmente é um canalha daqueles, em suas relações cotidianas. Mas contra os políticos todos se sentem no direito – e estão no direito – de esculhambar. Para mim, xingar político é mais do que bater em cachorro morto: é demagogia e hipocrisia. E o artigo do Roberto Pompeu de Toledo (dica do Walter) na Veja dessa semana só vem comprovar isso. Ele fala de uma pesquisa que contabilizou as multas de trânsito dos embaixadores de dezenas de países em Nova York. Os que tem mais multas: os africanos. Os que tem menos multas: Noruega e Suécia. Reparem que o índice corresponde exatamente ao grau de desenvolvimento do país. O Brasil, claro, ficou em um honroso 29º lugar, sendo o campeão da corrupção entre os latino-americanos. Confira o texto na íntegra:


Brasil, campeão de corrupção

Ou, no mínimo, campeão no número de diplomatas que violam as leis de trânsito em Nova York

O mais recente e mais original ranking internacional de corrupção coloca o Brasil em posição de destaque como o país mais corrupto da América Latina. Vencemos o Chile (quem não esperava?), vencemos o Paraguai (quem esperava?!), deixamos atrás, muito atrás, nosso histórico rival, a Argentina. Numa lista de 146 países de todo o mundo, organizada do mais corrupto para o menos, o Brasil ocupa o 29º lugar, superado apenas por um batalhão de africanos (Chade, Sudão, Moçambique e quinze outros), uns tantos asiáticos (Kuwait, Paquistão, Síria e quatro outros) e um trio da Europa do Leste (Bulgária, Albânia e Sérvia e Montenegro).

O ranking em questão é o dos países cujos diplomatas mais desrespeitaram as leis de trânsito em Nova York. Dois pesquisadores americanos, Raymond Fisman, da Universidade Colúmbia, e Edward Miguel, da Universidade da Califórnia-Berkeley, adotaram o inovador critério de buscar, entre os diplomatas acreditados junto às Nações Unidas, aqueles que mais abusaram da vantagem de ser isentos do pagamento de multas de trânsito, para medir o grau de corrupção dos respectivos países. No topo da lista aparece o Kuwait, com um total de 246,2 multas não pagas por diplomata num período de cinco anos, seguido por Egito (139,6), Chade (124,3), Sudão (119,1) e Bulgária (117,5). Entre os 22 países que, com nenhuma multa não paga, ocupam o final da lista, figura uma maioria cuja presença nessa honrosa parte do ranking já era esperada, como Suécia, Noruega, Canadá e Japão, notórios respeitadores das leis, e também algumas surpresas, como República Centro-Africana e Equador. Ao Brasil são atribuídas 29,9 multas não pagas.

Com a imunidade diplomática aconteceu mais ou menos o mesmo que com a imunidade parlamentar no Brasil. Ela foi criada para garantir a independência dos diplomatas e protegê-los contra perseguições de países hostis. Assim como a imunidade parlamentar, no Brasil, com o tempo passou a acobertar até crime de sangue, para não falar nos assaltos ao Erário, a imunidade diplomática foi estendida até às infrações de trânsito. Em Nova York a situação tornou-se tão insuportável que em outubro de 2002 o Congresso americano votou uma lei permitindo o guinchamento dos veículos diplomáticos estacionados em local proibido, a cassação das permissões especiais da ONU para estacionamento e o corte da ajuda prestada pelos Estados Unidos aos países infratores em 110% do valor das multas devidas. A partir daí, as violações caíram drasticamente.

Por isso mesmo, os pesquisadores escolheram trabalhar com o período anterior à nova lei. Seus dados são referentes aos cinco anos entre novembro de 1997 e outubro de 2002. Os carros com chapas assinaladas pelo "D" que os identifica como de uso diplomático não deixam de receber as notificações pelas infrações cometidas, apesar de seus responsáveis não serem obrigados a pagá-las – daí ter sido possível computá-las. Um problema que poderia distorcer os dados é a variação do número de diplomatas mantido por cada país junto à ONU, indo dos 86 da Rússia aos três do Burundi, da Eritréia ou de Papua Nova Guiné, segundo os números de 1998, tomados como referência. Optou-se por usar como critério as violações per capita. O Brasil, no ano de referência, tinha 33 diplomatas. Nossas 29,9 multas não pagas representam o total de violações cometidas por cada um deles.

A maioria das multas refere-se a estacionamento em local proibido. Isso caracterizaria realmente, como querem os pesquisadores, um ato de corrupção? Eles respondem sim. O ato de violar uma lei de trânsito, valendo-se da impunidade, caberia na definição-padrão de corrupção, formulada pela organização Transparência Internacional: "O abuso do poder em benefício próprio". Eles também estão convictos de que o sistema singelo que inventaram oferece um instrumento válido para medir a corrupção nos diferentes países, tanto assim que, segundo eles, o ranking apurado não difere muito de outros existentes para o mesmo fim.

Será? Observando-se a posição de nossos vizinhos na lista, deparamos com situações que causam estranheza. A Argentina figura bem atrás do Brasil, na 92ª posição, com 3,9 multas. Mesmo admitindo, o que é duvidoso, que os argentinos sejam menos corruptos, serão tanto assim? O Chile é o segundo latino-americano do ranking, com 16,5 multas não pagas, e o Paraguai, o terceiro, com treze. É difícil acreditar que o Chile seja mais corrupto que o Paraguai. Há outros casos que contrariam as avaliações baseadas no senso comum e na observação a olho nu das realidades do mundo. Talvez seja uma fantasia, da parte dos pesquisadores, achar que descobriram um método confiável de medir corrupção. Resta que os diplomatas brasileiros abusaram, sim, da impunidade para cometer mais violações às regras de trânsito do que os de todos os outros países da América Latina. Também resta que ficaram entre os 20% que mais as cometeram, entre todos os países do mundo. Que vergonha, Itamaraty.

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