Sobre Saddam, direitos humanos e esquerda

"Atualmente, em quase todos os países islâmicos, a pena de morte é praticada sem que os politicamente corretos do ocidente achem isso ruim."

Parto desta boa frase deixada pelo leitor Tosco, para falar um pouco sobre um tema que, nos dias atuais, incomoda a qualquer pessoa sensata que se considere de esquerda. Concordo com a frase do leitor, mas a utilizo para seguir um outro caminho – na mão de Tosco, ela foi usada para relativizar a defesa dos direitos humanos e a condenação à pena de morte. Para mim, ela serve de alerta justamente para reafirmarmos a defesa dos direitos humanos, essa coisa cada vez mais condenada e tratada como demagogia pela onda intelectual neocon (que, aliás, eu leio e acho bastante instigante).

Esse deboche cada vez mais comum em relação aos direitos humanos é, ao meu ver, reprovável, mas explicável. Tem na própria esquerda o culpado por sua criação, como explico a seguir.

Em tempos de completa esquizofrenia ideológica, em tempos em que a única expectativa é saber o quão liberal vai ser um governo (alguns são mais e outros menos, a diferença entre esquerda e direita se resume a isso), só o que restou da esquerda foi – ou deveria ser – a intransigente defesa dos direitos humanos. O enforcamento de Saddam traz a questão de volta ao debate. Não faltaram reações de esquerdistas à morte de Saddam. Reações justificáveis, a meu ver – a pena de morte nos remete a um instinto quase primata de eliminação do outro diante de impossibilidade de se resolver problemas. Mas não entrarei na discussão da pena de morte. A questão mais relevante, me parece, é saber o que há por trás dessa condenação à morte de Saddam: convicção na defesa dos direitos humanos ou mero oportunismo político?

Nunca na história as contradições da esquerda ficaram tão escancaradas quanto a partir do momento em que ela passou a defender o terrorismo e os regimes totalitários islâmicos, apenas por eles se oporem a Bush e a Israel. Em nome de uma obsessão ideológica, vemos hoje todas as forças de esquerda mundiais – em especial a atrasada latino-americana – condenar, por exemplo, qualquer tentativa de Israel de se defender de ataques terroristas. É sabido que Israel, apoiado pelos EUA, luta por uma causa discutível. Mas negar a um país a possibilidade de se defender, quando atacado sistematicamente, é uma atitude antidemocrática. Democracia. Uma palavra que parece cada vez mais esquecida pela esquerda.

O pior lado desta questão, ao meu ver, é outro. A esquerda outrora humanista, que me ensinou a condenar a pena de morte e a discriminação de homossexuais, mulheres e qualquer tipo de minoria, parece cegar diante das atrocidades e abusos praticados, sem nenhum tipo de constrangimento, por estados islâmicos. Tiranos sanguinários e sociedades bárbaras, que apedrejam mulheres, ao simplesmente se oporem aos EUA e a Israel, passam automaticamente a serem considerados mártires dos oprimidos, quando sabemos que a violência está em seu DNA. Saddam, Bin Laden e Fidel, hoje, são ídolos de uma parte da esquerda, a parte da esquerda que trai escancaradamente os direitos humanos e a liberdade.

É chegado o momento de se poder condenar o estado religioso, belicoso e conservador instaurado por Bush, condenar a invasão do Iraque da maneira como foi feita, condenar as décadas de terrorismo de Estado praticado pelos EUA contra o Oriente Médio, condenar a pena de morte amplamente saudada pela população norte-americana e a tortura amplamente aplicada por tropas norte-americanas, condenar o enforcamento de Saddam. E, por este mesmo motivo e sem se contradizer, condenar os regimes islâmicos tiranos, condenar a pena de morte em países do oriente médio, condenar a bárbara discriminação de homossexuais, mulheres e minorias nos países que se opõem a Israel e aos EUA.

Ou será que foi pura ingenuidade minha achar que alguma vez na história a esquerda defendeu realmente os direitos humanos e não o seu próprio projeto de poder?

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