Discurso de churrasco

Uma discussão que surgiu em meio ao misto de ataques histéricos e hipocrisia que se seguiu à morte do garoto João Hélio é a do peso que os fatores emocionais devem ter na hora de se tomar medidas de Estado. Em outras palavras, a tal histeria coletiva deve ser levada em conta no momento de reformularmos as leis para que elas se tornem mais rígidas? Duas vozes de peso – pelo menos político – responderam "não" a esta pergunta ao longo da última semana. Uma delas, a do presidente. A outra, a da ministra do STF, Ellen Grace. Ambos recomendaram ao congresso que não tomasse decisões motivadas pelo calor do momento, pelo ódio da baba que escorre da boca da classe média pedindo sangue no Jornal Nacional.

Em contrapartida, durante a manhã da última quarta-feira, no primeiro debate da Comissão de Constituição e Justiça após o crime bárbaro, o senador Antônio Carlos Magalhães, presidente da CCJ, ensaiou um discurso furioso – que chegou a dar pena, pela pouca força que a idade lhe confere – contra as declarações de Ellen Grace. ACM convocou os senadores a colocarem seus ódios à flor da pele para reformular a lei brasileira. De resto, por conta da boa argumentação tanto de Aloísio Mercadante (PT-SP) – contra a diminuição da maioridade penal – quanto de Demóstenes Torres (PFL-GO) – a favor –, a CCJ teve um debate qualificado como há tempos não se via.

Mas você deve estar se perguntando: como levar em conta uma discussão em que, até agora, os protagonistas são Lula, Ellen Grace e ACM? Foi mais ou menos o que eu me perguntei ao longo da semana. Para mim, este é o tipo de debate que só pode encontrar campo fértil na demência brasileira. No último programa Sem Fronteiras, da Globo News, Silio Boccanera, em Londres, colocou a questão da emoção x leis para uma jurista inglesa, especializada em legislação para menores infratores. A resposta dela foi a única possível: risos. Encerrou a entrevista. Não há como alguém com um mínimo de bom senso achar que a melhor decisão será tomada em tempos de fúria.

Pois enquanto a discussão se resumia a Lula, Ellen e ACM, não havia muita surpresa. O grave, ao meu ver, é quando um intelectual minimamente tarimbado e influente começa a dizer que talvez seja mesmo razoável relativizarmos a razão e, quem sabe, dar vazão ao nosso lado adolescente na hora de tomarmos uma decisão que repercutirá em todo o comportamento ético de uma sociedade – como significaria, por exemplo, a redução da maioridade penal. Foi mais ou menos isso que fez Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia da USP, na Folha de São Paulo de domingo, no texto Razão e Sensibilidade. Algumas das frases do artigo de Ribeiro provavelmente devem ter sido ouvidas da boca de uma ingênua tia de João Hélio durante seu enterro, como "Se há Deus, e acredito que haja, embora não necessariamente antropomorfo, como admite Ele esse mal extremo, gratuito, crudelíssimo?". Em seguida, afirma que está colocando em xeque todas as suas certezas diante do crime. "Quer isso dizer que defenderei a pena de morte, a prisão perpétua, a redução da maioridade penal? Não sei. Não consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas, embora isso fosse desejável."

Bem, acredito então que, se ele não se sentia em condições de contribuir com o debate, deveria ter recusado o convite da Folha para redigir o artigo de domingo. Quando intelectuais começam a repetir o discurso que o meu e o seu tio costumam fazer no churrasco de domingo, depois de algumas cervejas, é porque a coisa vai mal, muito mal.

Para quem não assina a Folha, o Observatório da Imprensa reproduziu o artigo.

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