Moço(a) culto(a) que nem tu, se não leu Victor-Hugo no original, ao menos sabe de Notre Dame de Paris pelo desenho da Disney. Que, claro, não contava com as sacanagens. Mas e como não ter quando quatro (talvez cinco, se contar Clopin, o "pai adotivo") rapazes estão querendo desesperadamente levantar os saiotes da ciganinha Esmeralda? Há uns anos atrás, em Paris, fizeram disso um musical, coisa que já é engraçada por natureza. Curto um ópera-rock, mas às vezes, quando percebo o ridículo da coisa, gargalho forte. Algo pode ser mais engraçado do que três pessoas discutindo assunto sério em música? E pior é quando cantam os três. É o mundo tirando com a nossa cara.
O espetáculo inteiro em mp3 e um conhecimento intermediário na língua do hexágono fizeram-me detectar algumas pérolas do eufemismo. Tão mais hilárias do que Victor-Hugo jamais imaginou. Antes, é necessário e de muito bom tom que eu faça um pequeno resumo da trama. A qual, perceba, é das mais complexas. Sobretudo no livro, do qual preservo o leitor de explicação detalhada: a obra tem a maior quantidade de núcleos dramáticos que já vi em toda minha vida. E, justamente por isso, sofreu mutilações. No desenho, imagino que incontadas. No espetáculo, ao menos algumas referentes a um final novelesco no qual descobrimos de quem Esmeralda é filha. Tanta reviravolta desnecessária, mas ainda assim uma leitura pra lá de prazerosa.
Como tempo já foi perdido com minha mania de tangenciar, encurto as coisas. Quatro são os apaixonados por Esmeralda: o Padre Frollo (nenhuma relação aqui com Lord of the Rings, nerd), Quasimodo, Gringoire, e Phoebus (o cavaleiro). É ela apaixonada por quem? Um velho padre, o corcunda mais feio do mundo, um pobretão covarde ou um rapaz de uniforme? Adivinha só, geninho.
Saiba isso e você está apto a acompanhar agora a viagem musical em busca da boceta cigana. Me perdoem os termos, amigos, mas é isso mesmo, embora eles insistam em dizer de outras inúmeras formas. Foi excluído daqui qualquer discussão importante sobre o Renascimento e sobre os sans papiers (os imigrantes) da Paris do século XV, bem como as declarações de amor puro de Quasimodo, o único que parece amar do jeito que uma mulher espera. Pena que é corcunda. Ninguém se dá bem nessa história. Assim é a vida. Comecem a cantar.
Clopin anuncia: todo mundo quer te comer. Ele, inclusive.
Esméralda tu sais / Tu n'es plus une enfant / Il m'arrive maintenant / De te regarder différemment
(Esmeralda, você sabe / Você não é mais criança / Me acontece agora / De te olhar diferente)
Tem início a putaria.
Esméralda tu sais / Les hommes sont méchants / Prend garde quand tu cours / Dans les rues, dans les champs /Est-ce que tu me comprends? / Tu arrives maintenant a l'âge de l'amour
(Esmeralda, você sabe / Os homens são maus(?) / Fique atenta quanto você corre / Nas ruas, nos campos / Será que você me entende? Você chega agora à idade do amor
Esmeralda, você pode ser currada a qualquer instante, em qualquer lugar. Já tá na idade de dar.
Phoebus está dividido entre a cigana e a ricaça Fleur de Lys (que, aliás, tem a voz muito mais sexy do que a metida com o demo)
L'une pour le jour / Et l'autre pour la nuit / L'une pour l'amour / Et l'autre pour la vie / L'une pour toujours / Jusqu'à la fin des temps / Et l'autre pour un temps un peu plus court
(Uma para o dia / Outra para a noite / Uma para o amor / Outra para a vida / Uma para sempre / Até o fim dos tempos / E outra por um tempo um pouco mais curto)
Phoebus te entende como putinha, Esmeralda. Sai dessa. Veja que em 1482 já existia o tal do pensamento mulher para casar e mulher para fazer sexo como dois seres completamente diferentes. Ah, mas eu aposto que a Fleur de Lys sabia das coisas, Phoebus. Ah, se sabia, ela e aquela pele ALVA desfilando com os peitos apertados pelas vestimentas da época. Vale mais que a hipponga que ficava FUMANDO BECK e dançando em frente à catedral.
Os três imbecis declaram seus amor com vozes e intensões bem diferentes
É o hit da peça: Belle. Rolou até paródia, muito mais chula que esse post que vos escrevo. E o clipe em RUSSO também é algo impagável (vale dizer que a Esmeralda russa é idêntida à Sandy. Quem esteve lá por casa confirma. Quem não, eu convido). Quasimodo, o primeiro a cantar, declara seu amor bem intencionado, fechando com um purinho "deixe-me, ao menos uma vez, passar a mão nos cabelos de Esmeralda". A melodia então se repete na voz de Frollo, adaptando-se à sua mente pervertida e finalizando com um belo exemplar da sutileza masculina:
Oh ! laisse-moi rien qu'une fois / Pousser la porte du jardin d'Esmeralda
(Deixe-me, ao menos uma vez / Empurrar a porta do jardim de Esmeralda)
Deixe-me romper seu hímem.
Phoebus não deixa menos brega na sua terceira parte (antes daquilo lindo momento em que todos cantam juntinhos) e diz: "Eu vou colher a flor de amor da Esmeralda".
O Padre e seu drama pessoal, que é o que mais me diverte
A condição de homem de batina nos brinda com grandes versos:
Moi qui me croyais l'hiver / Me voici un arbre vert
(Eu que achava que era inverno / Me descubro uma árvore verde)
Eu que achava que era brocha, ando à beira da janela tocando uma.
Até porque, quando Esmeralda aparece, ela "acorda em mim o fogo de um velho vulcão". Mas o homem é FOGO mesmo, e arquiteto um plano de MORTE. Dentro da cela com a cigana, Frollo ainda tem uma última proposta.
C'est la mort ou l'amour / C'est la tombe ou mon lit
(É a morte ou o amor / É a tumba ou minha cama)
Esmeralda, moça íntegra, escolheu a forca. Morreu virgem.
postado por Carol Bensimon as 16:56 | pitacos (13) | trackBack (0)