isso nisso
Três horas na frente do computador transformam


Isso

As meninas estavam sentadas nos degraus da venda. Corria uma estrada ali na frente, naquela altura larga, que depois afinava para subir a serra em espiral. Ficavam olhando os carros e o calor e só. A venda era em casa de mil novecentos e trinta e poucos, que estalava como uma senhora de ossos fracos. Nas paredes tinham pendurado cartazes de refrigerante, com jovens bebendo pela metade da boca e sorrindo pela outra metade. Paravam ali aqueles que não iam ficar e logo se iam embora outra vez. As meninas ficavam reparando, cochichavam e queriam ir junto. Uma era loira de pernas finas e bem compridas, com picadas de mosquito e casquinhas de sangue de tanto coçar. A camiseta ia até as coxas, se coxas já tivesse, com um desenho dum sol, uma palmeira e um Miami. A outra, também de cabelos claros, com uma pedra riscava um degrau na entrada da venda. Essa era a irmã mais velha, que não mostrava perna nem nada, pois alguma coisa já começava a ter, e só a pulseira com umas bolas amarelas quebrava o preto da roupa. A de onze era a Titi e a de quatorze, a Lina.


Nisso

Acontece que nasceram numa cidade bem pequena entre duas mais ou menos grandes, um tipo de coisa ruim para o conformar-se, porque assim tinham toda a estrada pra olhar, e olhavam. E acontece que na beira da estrada havia uma venda em casa de mil novecentos e trinta e poucos, seus degraus uma arquibancada para as meninas. Ficavam, e toda a tarde. Uns carros passando, um carro parava. Titi deixava que as pernas finas se esticassem na passagem, com picadas de mosquito em casquinhas de sangue de tanto coçar. A camiseta ia até as coxas, se coxas já tivesse. O viajante pedia licença, entrava, Titi ria escondido. Lina, mais velha em três anos, era um tanto mais triste. Não mostrava perna nem nada, pois alguma coisa já começava a ter. Riscava o nome com uma pedra, só a pulseira com bolinhas amarelas quebrava o preto da roupa. O viajante outra vez ia embora com a coca-cola. Se vinham famílias, tanto melhor, a venda estalava como uma senhora. Dona Celestina fazia as somas a lápis na letra demorada de colégio. O viajante se impacientava porque tinha que viajar. E dentro da venda os velhos jogavam dominó sem falar nada.


O primeiro é o velho (isso que já era a terceira ou quarta versão) primeiro parágrafo de um conto que estou escrevendo, o segundo é o novo.
Ó, se eu pudesse, passava o dia só batendo papo nesses assuntos de processo, que é lindo, bicho. Ver a coisa tomar outra forma por paciência e intuição (que é palavra para dizer "técnica assimilada", acredito) até o jeito que a gente quer (pelo menos até o jeito que a gente quer NO MOMENTO) dá um arrepio bom, um espanto literário. Talvez passe um dia, tomara que não. Que delícia seria ir pro parque e ficar fazendo autópsia de texto em grupo.

postado por Carol Bensimon as 23:48 | pitacos (8) | trackBack (0)

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