Li “O Segredo de Joe Gould” do jornalista da New Yorker Joseph Mitchell. Pensei que tinha ganhado de presente de uma leitora por causa do meu perfil do Zequinha, mas não foi interamente por causa disso. É porque esse é um de seus livros prediletos mesmo. Fiquei agradecido do mesmo jeito.
O livro traz dois perfis que o jornalista escreveu sobre Joe Gould, um sem teto letrado de Nova Iorque. Estudou em Harvard, mas escolheu esse estilo de vida porque seria a única forma que ele poderia trabalhar integralmente no seu livro “Uma história oral de nossa época”. Um livro gigantesco, onze vezes maior que a bíblia, onde estaria reunido todo tipo de histórias e conversas que Gould ouvira na vida. Acreditava que no futuro essa sua obra seriam de grande importância para o estudo histórico de sua época. Aquelas conversas e histórias significariam muito mais do que as atitudes dos parlamentares ou presidentes do seu país tomavam. Gould tinha vários amigos que o ajudavam com "contribuições para a fundação Joe Gould", como ele gostava de dizer. Tinha como amigo vários escritores, editores, jornalistas e poetas. O único famoso que consigo lembrar agora é o poeta E. E. Cummings.
O primeiro perfil, escrito em 1942, é chamado “O Professor Gaivota”. Gould dizia saber a língua das gaivotas e que alguns de seus poemas ficavam mais bonitos em gaivotês. O segundo perfil foi escrito 22 anos depois. Tempo que Mitchell passou mantendo contato com Joe Gould. Esse tem como título o nome do livro e é onde Mitchell revela alguns dos grandes segredos de Joe Gould que guardara por todos esses anos. Realiza um profundo perfil psicológico de Gould. Num estilo muito acessível e profundo, complexo, rico em detalhes. É uma escrita tão agradável, organizada e limpa que acredito que esse livro pode ser capaz de fazer com que uma pessoa passe a gostar de ler. E agrada mais ainda quem já está acostumado com leitura. O cara foi um dos melhores colaboradores da New Yorker, a famosa revista onde um jornalista que entrava nela ganhava condição de escritor, tamanha era obsessão editorial pela qualidade do texto.
A ótima tradução é de João Moreira Salles. Ele escreve também um ótimo posfácio contando sobre o jornalista Joseph Mitchell e sobre a New Yorker. Chega a parecer piada a maneira como a revista trabalhava. Um lugar de sonho para qualquer jornalista. Não sei se ainda hoje ela é assim, mas na época de Mitchell, era o próprio jornalista que se pautava e tinha o tempo que achasse necessário para conduzir suas pesquisas e escrever a matéria. Isso significa deadlines de 8 meses, 2 anos ou até mais. E todo mês pingava o salário na conta dos jornalistas. Só pra contar um absurdo, depois que Joseph Mitchell escreveu “O Segredo de Joe Gould”, trabalhou por mais de 30 anos na revista sem publicar absolutamente nada. Ia trabalhar todo dia, sentava na sua máquina e ficava escrevendo o dia todo, mas nunca mais publicara uma linha na revista. E durante esse tempo todo seu salário caia todo mês em sua conta. Queria saber se até hoje a New Yorker é assim. Incrível.
Pra quem interessa em jornalismo literário, ou que está estudando jornalismo, é um livro que tem que ser lido. Pode ensinar mais que os quatro anos de cursos. É uma obra-prima do jornalismo literário, bem como diz em sua capa. Estou pensando em reler só pra poder entrar em contato de novo com a cadência e lucidez do texto de Mitchell. E não é a toa que o texto é tão bom. Mitchell e os editores da revista trabalharam durante dois anos editando o texto antes de publicarem - parece que foi escrito numa sentada só, sem a necessidade de revisão. E personagens como Joe Gould, ou mesmo o Zequinha, são mesmo pessoas que são um privilégio de conhecer. Isso faz com que fique ainda mais claro pra mim que escrever é, além de tudo, um grande ato de generosidade, uma vontade de compartilhar.