Era um sábado de manhã, acordei cedo e me preparei para ir até o único cemitério de São Joaquim da Barra, nordeste do estado de São Paulo. Ninguém querido tinha morrido, fui à procura do Zequinha para marcarmos um horário para entrevistá-lo. O cemitério estava completamente vazio, imerso num completo silêncio. Subia a grande rampa principal e olhava para os lados na esperança de encontrar alguma alma viva, mas não via nenhum sinal. O único sinal de vida ali era uma gata que dormia em cima de uma lápide, com seu filhote deitado em cima dela. Ela apenas levantou sua cabeça quando me viu. Nenhum sinal do Zequinha.
Caminhando entre os túmulos, percebo de longe um amontoado de terra. Chego mais perto e vejo que um bocado de terra está saindo de dentro do buraco. Me aproximo e encontro com ele a bem mais de sete palmos do chão, com uma pá, cavando uma nova cova. “Fala, cidadão”, ele diz quando me vê. “Trabalhando assim logo de manhã?”, pergunto. “Vai ter um enterro hoje às seis da tarde, vou deixar tudo já de manhã.” Digo o que quero com ele: “Precisamos marcar um horário pra gente conversar, vou escrever o seu perfil.” Ele olha torto, como se aquilo fosse tudo menos uma boa idéia. “Vai ter que entregar um remédio pra dor de estômago pra quem for ler”. Marcamos um horário à noite, depois do enterro.
Fui embora no cemitério e passei pra rever minhas avós. Leite de vaca de verdade com café, pão fresco da padaria da esquina, bolo de bolo, como ela costuma dizer, entre biscoitos e bolachinhas. Reencontro o Zequinha à noite. Ou melhor, ele me reencontrou. Descia a pé de volta pra casa e dentro de um boteco ele me acena. Tomando cerveja sentado sozinho no balcão. Me convida pra tomar uma com ele. Nego o convite, mas fico alguns minutos de bate-papo com ele. Me informa que talvez não dê pra conversarmos à noite. “Não sei que horas vou sair daqui. Se daqui uma ou três, quatro horas.” E dá um sorriso cheio de energia, quase infantil, que contrasta com sua imagem dentro da cova, concentrado no trabalho. Combinamos um novo horário pro dia seguinte e vou embora. À meia-noite, saio de casa pra dar uma volta de carro pela cidade e quem sabe encontrar com algum amigo que não vejo há tempos. Passo em frente o bar e vejo o Zequinha ainda lá, sentado no mesmo lugar, de pernas cruzadas, com uma garrafa de cerveja e um copo na sua frente, olhando para a televisão grudada no teto do bar. Acelero. Não acho nenhum amigo nos bares da cidade, volto pra casa pra dormir, pensando que podia ter ficado naquele bar conversando com o Zequinha aquele tempo todo.
No outro dia, depois que escureceu, subo até o Jardim Canadá, um dos bairros populares mais novos na cidade. Fica ao lado do cemitério. Pulo um matagal que está na beira na calçada e grito seu nome perto da frágil porta de latão. Zequinha abre a porta e quase não olha pra ver quem é. Ri muito e volta rápido pro sofá. “Senta aí que estou vendo o melhor programa da televisão brasileira.” Era o Pânico da TV. O quadro era do Repórter Vesgo e de um imitador do Sílvio Santos, onde entrevistam personalidades e fazem piada em cima do seu estrelismo. A cada piada rápida dos humoristas, Zequinha ria compulsivamente, quase sem fazer som.
No sofá da frente está sentada sua mãe. Olha pra mim de forma inerte, com uma expressão de curiosidade, quase paralisada. Tento um cumprimento com a cabeça e ela pergunta meu nome. Zequinha não tira os olhos da tevê, rindo a cada cinco segundos. Digo meu nome e ela pergunta aonde moro. Zequinha está em um mundo paralelo, como se não estivéssemos ali. Digo o bairro onde moro e ela pergunta se tenho irmãos. Zequinha coça a barba e esfrega as mãos, agitado de tanto rir. Respondo que tenho dois irmãos e ela pergunta se o carro que está estacionado lá fora é meu. Zequinha intervém carinhosamente: “É dele sim, mãe.” “Mas que carrão, heim.” Digo que é um carro popular, é bom, mas não chega a ser um carrão. Pergunta se eu estudo. Faço faculdade, respondo. Ela olha pro seu filho e diz “Viu, Zequinha, você deveria ir fazer isso também, seria bom pra você, viu.” Ele responde no mesmo instante, com entonação agressiva: “Pra quê? Pra dar aula pros professores?”
José Aparecido Pazetto Ribeiro tem 29 anos. Do lado esquerdo do peito tem tatuado o Bob Cuspe, o personagem punk dos quadrinhos do Angeli. “Do lado esquerdo do peito”, ele reforça a informação com um sorriso. Depois que anoto seu nome completo, me conta como foi seu primeiro dia no curso profissionalizante de eletrotécnica. O professor pediu para os alunos se apresentarem e quando chegou na sua vez, “Meu nome é José Aparecido, mas não quero ver ninguém me chamando desse nome. Podem me chamar de Zequinha mesmo.” Zequinha, pois.
Já trabalhou num varejão quando era mais novo e 40 quilos mais gordo. Descarregava os caminhões cheios de caixas com verduras e frutas. Fazia todo o tipo de serviço e aproveitava pra ficar comendo o dia inteiro. Trabalhou também esporadicamente como servente de pedreiro. Hoje é o atual coveiro da cidade. “Agora posso dizer que meu currículo de metaleiro de verdade está completo. Sou um coveiro. Cheguei ao topo”, ri fazendo com a mão o símbolo do metal.
Estamos sentados em seu quarto. “Vou colocar um hino pra gente ouvir.” Um disco antigo do Ratos de Porão. Muitos outros cedês estão em cima da estante do som. A maioria de heavy metal. “Isso tudo aí é death metal”, me corrige. Porém, embaixo do amontoado de discos de metal, contrasta a capa de um cedê do Chico Buarque e um do Nei Matogrosso. “Essas coisas aí não são minhas não, é tudo do meu irmão”, diz meio constrangido.
O colchão da cama do seu quarto está em péssimo estado. Caixas de papelão estão amontoadas nos cantos do quarto. Há muito livros esparramados pelo chão, colchão, estante de som, armário, gavetas, caixas de papelão, por todos os cantos. É possível encontrar também bastante jornal, todos são o Caderno 2 do Estado de São Paulo. Consigo avistar de longe em sua cama o livro “A Ética” de Aristóteles e ao lado outro do filósofo Arthur Schopenhauer.
“Eu comecei a gostar de ler com quadrinhos. Foram gente como o Angeli, Laerte, Glauco Mattoso, Fernando Gonzales e a turma todo do Chiclete com Banana os responsáveis por isso. Antes disso, eu não existia. Não era nada. Nunca tinha pensado na vida. Era como se fosse um gado, um animal, só agia por instinto. Daí tomei contato com esses quadrinhos e pela primeira vez na vida algo começou a fazer eu pensar.” E pra pular dos quadrinhos para os livros, foi só um passo.
O telefone toca. Ele levanta da cama pra atender. Apenas ouve por um longo período de tempo. Então começa a responder. “Não... não.” Curto trecho em silêncio e repete “Não... não.” Mais três vezes ele repete isso. “Não... não... não.” Então pergunta “Beber?” e responde “sim, sim, sim, sim, sim.” Percebo que tem três sacos de cimento ao lado do sofá da sala, sofá que serve como sua cama pra dormir. Seu colchão do quarto não tem condições. Voltamos pra sala porque seu quarto está abafado demais, apesar do tempo frio e da chuva que caiu poucas horas atrás. Sentamos no sofá novamente. Sua mãe vê minhas anotações. “Você está fazendo tarefa?”, pergunta. Repete a pergunta “Aonde você mora mesmo?”
Foi durante o período de cinco anos em que alternava estados depressivos e paranóicos que Zequinha mais leu. Ele até procurava trabalho, mas tinha recaídas e voltada atrás. Ficava trancado em casa. Só saia raramente à noite até o bar da esquina pra comprar cigarro ou tomar uma cerveja. “Essa época eu não fazia nada. Ficava trancado dentro de casa tamanha era a minha sensação de perseguição. Eu saia na rua e achava que todo mundo estava me olhando. Totalmente paranóico. Durante esses cinco anos eu lia no mínimo um livro por semana. E nunca lia um livro uma vez só. Relia no mínimo mais duas vezes, pra entender mais por completo o que o cara queria dizer com aquilo tudo”.
Leu toda a coleção d’Os Pensadores. “Filosofia faz mal. Já leu Santo Agostino?” Respondi que não. “Quando li Santo Agostino ficava com as idéias dele por uns 15 dias na cabeça. É uma viagem. Tem um trecho em que ele rouba uma pêra da casa de seu vizinho só para experimentar o pecado. Isso quando ele ainda tinha 16 anos, se me lembro bem, a idade da transgressão. Eu fiquei com isso na cabeça. Transgredir pelo pecado. Filosofia e religião é a maior loucura, cara. Faz mal”.
“Um escritor que abriu muito minha cabeça foi Machado de Assis. Lembro quando li seu conto A Igreja do Diabo.” Foram os livros de Machado de Assis que fizeram Zequinha perder aversão de livros, quando ele tinha 17 anos. Um livro inesquecível para ele foi Tenda dos Milagres, de Jorge Amado. “Já leu?”, ele me pergunta novamente. Respondo que não, levemente constrangido. “Esse eu lembro bem porque li em apenas um dia e tem quase 800 páginas. Acho que fiquei umas 10 horas lendo. Jorge Amado é engraçadíssimo, o livro é putaria o tempo inteiro, de fora a fora.”
Seu espírito metaleiro fez ele ler Nietzsche quando viu a capa do livro “O Anti-Cristo”. “Li mas nem lembro direito o que ele queria dizer com aquilo tudo. Esse eu só li uma vez. Lembro que achei extremamente engraçado. Engraçado pra caralho, todos os livros que eu li dele. Principalmente o Anti-Cristo. Eu lia e me matava de rir”.
“Eu gostei muito também dos livros do Lima Barreto, principalmente os que faziam referência ao budismo. Eu adoro as histórias budistas. Conhece aquela da semente da mostarda?” Respondo que não, novamente, como respondi para os contos do Machado de Assis, para o Lima Barreto, Nietzsche, entre outros. “A história bastante resumida é o seguinte. Uma mulher estava muito deprimida por causa da morte do seu filho, então ela procurou o Buda e disse que faria de tudo pra que ele pudesse trazer a vida do seu filho de volta. O Buda então disse que pra ele fazer isso, ela tinha que trazer pra ele uma semente de mostarda de uma casa onde não houvesse morrido ninguém da família. A mulher então passou a procurar a semente em todas as casas, e por final acabou percebendo que não existia nenhuma casa onde não houvesse morrido algum ente querido. Então ela voltou até o Buda e disse que tinha entendido seu ensinamento.”
Estamos conversando agora na frente de sua casa, sentados com as costas apoiadas na parede, sobre um pedaço de cimento. Sua casa não é cercada por muro, então dá pra ficar vendo a rua do bairro quase deserto. A terra entre o pequeno pedaço de cimento e a calçada ainda estava úmida da chuva e trazia um cheiro bom pro ar, contrastante com cheiro do cigarro que Zequinha acendeu. Ele é capaz de ficar por um longo período de tempo de cócoras, alternando as pernas de apoio.
Se surpreende quando lhe pergunto se ler todos esses livros durante esse tempo ajudou ele em alguma coisa. “Ôh, ajudou e muito. Hoje eu tenho consciência de 99% dos meus defeitos. Hoje eu tenho muito mais noção das minhas atitudes, do que eu vou falar, do que vou fazer. Só não consigo mais enxergar nenhuma qualidade em mim. Os livros também me fizeram aprender a me colocar no lugar das outras pessoas, a sentir um negócio que se chama empatia pelo outro”.
Um vulto passa sobre nossas cabeças. Zequinha dá um pulo ligeiro. “Ô cacete, foi uma borboleta isso? Eu tenho medo de borboleta. Não posso com borboleta nem nenhum inseto voador. Não tenho medo de escorpião, cobra, nada. Encontro isso direto lá no cemitério, mas não posso com esses bichos voadores”. Acho graça da figura forte, barbada, de 1,80m, com traços de quem trabalha pesado com medo de uma suposta borboleta, ou um morcego, que seja.
Hoje em dia, trabalhando normalmente, acordando e dormindo cedo, Zequinha não lê a mesma quantidade de livros de quando só ficava em casa, variando momentos de depressão e paranóia. “Hoje em dia o que eu mais gosto de ler são crônicas, principalmente os cronistas do Estadão. Hoje gosto mais de ler coisas curtas, contos curtos. Tenho muito mais insights interessantes lendo crônicas e contos, textos mais curtos. Acho que o último livro que li foi O Universo numa Casca de Noz do Stephen Hawking. É muito bom. Ele vai dizendo umas coisas, você vai imaginando e quando vira a página tem um desenho igualzinho daquilo que você estava pensando”.
Em longos períodos em que ficava sem sair do quarto, cercado de livros, revistas e jornais, chegava a recortar matérias e reportagem dos mais variados veículos e juntava elas numa seqüência, achando possíveis ganchos ou contrastes que deixavam a seqüência divertida. “Fazia isso por pura diversão. Ia grifando e anotando coisas, também. Cheguei a ter 56 canetas Bic nessa época. Eu colecionava frases de efeito também num caderno.”
Apesar do gosto pela letras, a grande habilidade de Zequinha é pra pintura. Chegou a expor seus quadros num pequeno evento na cidade. “As pessoas mais velhas que viam meus quadros geralmente faziam careta e me perguntavam o que você tem na cabeça, meu filho?”, diverte-se. “As mais novas apenas diziam Muito louco.”
Desenha desde criança, com qualquer coisa que apareça na frente. “Tinta, caneta, lápis, carvão, até com tijolo”, exagera rindo. “Mas no início eram coisas totalmente sem sentido. Não era nada que significasse alguma coisa, era pura diversão para mim e somente pra mim, enquanto desenhava. Depois que comecei a ler, vi que poderia dar sentido aos meus desenhos.” “Eu li um livro do Roland Barthes e fiquei louco com aquele papo de signos, símbolos. Como chama aquilo mesmo?” Semiótica, respondo. “Isso. Semiótica é a maior viagem, cara. Então fiquei obcecado em colocar um monte de signos nas minhas pinturas.”
Vai até o quarto e traz fotos da casa antiga. As paredes do seu quarto eram todas desenhadas, cheias de frases, algumas escritas em giz vermelho com traços fortes, quase violentos. Na mudança pra casa nova, jogou todos os cadernos de desenho e quadros no lixo, pra limpar espaço. “E porque estava de saco cheio de ver eles também.”
Entre a papelada de seu quarto, debaixo de Caderno2 velho e amassado, encontro um pedaço de papel recortado à mão de forma irregular escrito: “Dizem que o Diabo era um anjo e Deus o mandou para o abismo. Só que ninguém explicou o por que da desavença. Seguinte: Deus resolveu criar o homem. O diabo olhou e disse: Deus, você tá fazendo cagada. Deus olhou pro Diabo e falou: Vai pro inferno. E ele foi.”
Com o tempo, foi ficando cada vez mais misantropo, como ele mesmo gosta de se intitular. A primeira vez que essa sensação lhe bateu forte foi na Festa da Soja, a festa popular da cidade que costuma atrair uma enorme multidão. “Foi numa Festa da Soja, quando eu estava bem no meio da multidão, com uma garrafa de cerveja na mão, que eu senti uma solidão que nunca tinha sentido antes. Me senti extremamente sozinho. Acho que a solidão veio forte porque eu estava cercado de uma multidão gigantesca. E foi algo muito ruim. Só não foi pior de quando eu passei a me sentir invisível. Eu andava na rua e parecia que era invisível, que eu não existia.”
Sempre teve fama ruim pela cidade por sempre andar de roupas pretas e barbado, com a cara fechada. Mas nunca se meteu em brigas. A única fez que deu um soco em alguém foi em seu melhor amigo Carlão, sem querer. “Eu queria era bater no meu irmão, mas o Carlão entrou na frente pra apartar e acabou levando um soco. O desgramado é tão gente fina que quando viu que tinha saído sangue, só ficou sério e disse Zequinha, da próxima vez que acontecer isso eu vou ignorar.”
Quanto mais a conversa se desenvolve, mais o Zequinha fica à vontade para contar suas histórias e coisas que pensa. Percebe-se que ele raramente tem uma boa conversa onde pode se soltar e agir normalmente Comento isso com ele. Que há muito tempo eu não tinha uma conversa tão longa e boa com alguém. Pergunto se ele não sente falta de conviver num outro ambiente, com pessoas mais interessantes, inteligentes, que iriam lhe agradar mais caso ele convivesse com elas. “Olha, rapaz, eu me acostumei. Eu automaticamente me ajusto dependendo da pessoa que vou conversar. É automático, nem penso nisso. Se vou conversar com outro coveiro mais velho, o Dioclécio, um bebum muito simples, ajusto ao mundo dele e então posso conversar quanto tempo que for sem me incomodar, sem ficar fazendo juízo de valor algum. Se tenho que conversar com um doutor, com um cara inteligente, é a mesma coisa. Não muda nada. Me acostumei. Então não acho ruim não, nem percebo, me acostumo aonde estou.”
Mas é inevitável estranhar o estilo de vida de uma pessoa assim, tão inteligente e ao mesmo tempo em uma posição social tão pouco respeitada. Imagino quantas pessoas vão ao cemitério e vêem aquele moço novo de coveiro. O que elas ficam imaginando dele. Comento que a maioria das pessoas que convivo estudam, lêem livros e tentam ficar mais inteligentes pra poder alcançar uma posição melhor e mais confortável no futuro, um espaço no do mercado de trabalho, et cetera. E são pessoas com uma capacidade intelectual muito inferior à sua, digo diretamente pra ele. “Por que então você não aproveita isso e usa para melhorar de vida? Por que não entra numa faculdade, estuda, seria barbada pra você.”
Ele me ouve com atenção, esperando eu parar de falar com a resposta na língua. “Nesse mundo que você está me falando tem que seguir muitas regras. Sobre faculdade, o mundo acadêmico, que eu conheço um pouco, na verdade eu quero que se foda. Eu poderia fazer um curso superior e ser respeitado por todo mundo, que nem um monte de amigo metaleiro meu que fez Direito e passou a ser respeitado. Mas é um mundo cheio de falsidade. Eu sou tosco demais pra suportar tudo isso. Prefiro que alguém me mande tomar no cu com o coração do que receber um elogio falso. É mais fácil me tirar do sério me elogiando do que me xingando, na verdade”.
Desconverso, mas ele lembra de uma frase de impacto que ele criou tempos atrás: “O problema do ser humano é que ele se acostuma com tudo. Se acostuma até a se acostumar.” E também assume uma postura de culpa, dizendo que “Não adianta, a característica mais forte do ser humano é a preguiça. Sou um grande colaborador pra essa marca humana.”
De apenas short jeans e havaianas, ele vê sua gata siamesa chegando em casa. A pega no colo e fica conversando e fazendo carinho nela. A coloca no chão e fica coçando sua barriga. A gata se contorce toda. Depois não sai mais do pé dele. Canso de conversar e fico quieto. Ele me aconselha, velhaco: “Vê lá que você vai escrever de mim, heim, cidadão.”
Pego minha mochila na sala e me despeço de sua mãe. Cumprimento o Zequinha e agradeço pela boa conversa. “De nada, cidadão.” Vou andando até o carro com atenção para não pisar num barro mais mole e sujar meu tênis. Piso sobre o capim que beira a calçada e quando vou entrar no carro percebo que meu tênis e a barra de minha calça estão lotados de espinhos. Abro a porta, sento no banco e começo a tirar com cuidado. Quando percebo, Zequinha está rindo a poucos passos de mim. “Sei que tenho que carpir esse mato, mas toda vez que alguém pega esses espinhos e me xinga eu me sinto na obrigação de deixar eles aí.” Dou uma risada pequena, ligo o carro e me despeço mais uma vez. Acelero esticando as marchas na subida que tenho pela frente, com a sensação de que ter ganho algum tipo de presente valioso.