Dizem que tudo na vida tem sua primeira vez. A primeira vez que fui em uma pedicure foi por pura diversão. Estava caminhando sem rumo pelo centro da cidade e passei em frente a um local fino, com portas transparantes, recheado de madames de cinqüenta anos lendo Caras, muito parecido com um salão de beleza. Mas era só para os pés. Parecia ser um bom lugar. Entrei, fui até o balcão e olhei sobre o ombro de uma loira extremamente dourada e falsa que sorria pra mim sentada em um banco alto. Trinta reais a unha normal. Não achei caro. Coloquei meu olhos nos olhos da loira dourada e não hesitei: Oi, quero cortar a unha do meu pé. Ela estranhou um pouco, talvez por causa do meu boné de beisebol da Nike, e perguntou se estava encravada, com pus, olho de peixe, calosidade, micose entre outras doenças que nunca tinha ouvido falar. Só grande, respondi com um sorriso no rosto. Não tinha marcado horário nem nada, nem sabia da existência daquele local, nem sabia que diabos eu estava ali, me divertindo de maneira tão bizarra, quase doentia. Me via em um filme. A loira douradaça então disse: Como você não marcou horário, agora só tem a Paty livre, espera um pouquinho que já já eu te chamo.
Sentei junto com as madames e peguei uma Caras. Adoro quando vou ao dentista ou ao médico e tem uma pilha de Caras pra ler. Folheio umas cinco, seis, vendo as fotos e às vezes algumas legendas. Mas mal comecei a me distrair com a revista e fiquei com vontade de sair correndo daquele lugar sem dar explicação alguma. Acabar com aquela idiotice sem fim. Que diabos eu estava fazendo ali? O que me deu na cabeça? Por que eu ia gastar trinta reais pra cortar a unha do pé? A mesma unha que eu corto em menos de cinco minutos com um alicate que era do meu avô. Trinta reais eu poderia beber bastante com uns amigos, ficar jogando Formula 1 no fliperama até enjoar, comer quase três rodízios de carne ou até ter um serviço extra de alguma amiga no final de alguma noite. Mas não, eu iria gastar meus trinta reais pra cortar minha unha do pé. Eu estava decidido. Não sabia porque estava fazendo aquilo – seria por causa de tantas extravagâncias em todos sentidos nesse meu começo de faculdade que me levariam ao ponto de ter que ir cortar unha em um lugar nojento de tão chique pra eu poder sentir alguma transgressão em na minha vida?
A mesma intensidade da vontade de sair correndo dali voltou-se contra mim quando o sapato branco do pé direito da tal da Paty pisou o primeiro degrau da escada em espiral para chegar até o balcão. Fiquei paralisado na cadeira vendo ela descer a escada com cuidado. Ela era nova. No máximo uns trinta e quatro anos. Bastante comum. Na rua não chamaria atenção de ninguém. Mas era simpática. Mesmo assim estranhei a sensação de fascínio que surgia em mim, aleatoriamente, que acabou quando olhei em seu rosto e percebi que ela não tão bonita assim. Foi como se eu estivesse saído de uma hipnose o momento que ela chamou meu nome. Levei susto. Vamos?, perguntou sorrindo. Levantei com determinação e fui subindo as escadas bem atrás dela.
Entrei em sua cabine, sentei num banquinho e fui tirando o tênis e a meia. Tirei o boné pra coçar um pouco a cabeça. Coloquei de volta pra não assustá-la. Sentei na cadeira própria, que mais parece a de um barbeiro. A diferença é que tem um apoio para que a perna fique estendida. Estendi as pernas e relaxei com meus pés nus. Agora eu estava alí e tinha que fazer de alguma forma valer meus trinta reais. Ela então sentou logo à frente, numa cadeira bem baixa, parecida com as de bateristas. Sentou e ficou fitando meus dois pés. Com as duas mãos fechadas tocando sua barriga ela olhava meus pés, como se fosse um escultor contemplando uma tora de madeira, já imaginando qual seria o resultado final de sua obra. Fiquei extremamente sem graça com aquilo. Não sei dizer muito bem por quê, mas fiquei muito tímido, fiquei sério e me encolhi na cadeira. Ao contrário da noite anterior, quando depois de fazermos sexo a Ka ficou olhando disfarçadamente para o meu pau brilhante voltando para seu estado normal. Não senti vergonha alguma. Mas senti toda vergonha do mundo com aquela mulher olhando o meu pé. Até que ela quebrao gelo dizendo: "São bonitas suas unhas. São largas, grossas, muito fortes, com a semi-lua grande. Muitas mulheres que não têm pintam essa semi-lua na base das unhas”. Brinquei dizendo: Sempre cuido muito bem delas, é por isso. O que fez ela rir um pouco, talvez pelo tamanho grotesco que elas estavam. Mas logo ficou séria e muda, pegou seu alicate, baixou a cabeça e começou a trabalhar.
Naquele silêncio levemente constrangedor fiquei ouvindo o barulho da minha unha quebrando. E vendo a pequena mão da Paty fazendo força pra quebrar cada centímetro das minhas unhas. Tadinha. Passei a olhar o topo de sua cabeça. Não conseguia dizer se ela era bonita ou feia. Não, não era feia, não. Feia ela não era mesmo. Ela era toda arredondada. Todo arredondado mas nem um pouco gorda, mas apareciam os ossos. Ela tinha um pouco de barriga, dava pra ver. Mas mesmo assim, normal, nada demais, divago. Volto a observar ela trabalhar. Agora ela tirava peles dos cantos da unha que eu nem sabia que existiam. Saiam um monte. Era como se estivesse me despelando. Com a cabeça baixa ela perguntou Por que você veio cortar a unha aqui? Fiquei aterrorizado e sem resposta. Porque só de imaginar a situação eu achei tão engraçado que praticamente não consegui me conter. Não, não poderia dizer isso a ela. É porque minha unha tende a encravar, de três em três meses procuro uma profissional para cortar direito. Pronto, mesmo gaguejando consegui responder bem. Ela olhou melhor os cantos, puxou daqui, olhou dalí - Gozado, sua unha não tem o formato pra encravar.
Permaneci em silêncio vendo-a trabalhar até chegar no último dedinho. Durante todo o tempo que ela cortava as unhas, não levantara a cabeça. Só então, quando terminou o último dedinho, que levantou e olhou pra mim. Foi nesse momento que a substância química cinematográfica responsável pela câmera lenta em meu cérebro foi liberada. Ela parecia outra mulher. Tinha os olhos levemente estrábicos, com uma leve expressão de cansaço e ao mesmo tempo parecendo levemente bêbada. Como se estivesse acabado de sair de um transe. Na essência, lembrava um olhar que a Ka raramente tinha quando ficava descansando, ofegante, suada e descabelada. Fiquei paralisado. Ela pegou uma maquininha, pisou no pedal e começou a lixar minha sola do pé. Dei uma risada tão alta que a assustou. Pedi, rindo, que por favor, não precisa, não precisa, amenizando minha risada. Ela disse que eu estava pagando era pelo serviço completo. Fiz força pra me controlar e deixei ela lixar tudo, os dois pés. Brinquei dizendo que ainda bem que a cabine era fechada porque a última coisa que eu queria era um amigo me vendo naquela situação. Ela não achou a menor graça.
Tirou a lixa e trocou por uma menor. Lixou as unhas. Trocou de novo. Que é isso? É pra fazer massagem. Chega, chega, disse pra mim mesmo. Isso já está passando dos limites isso. Já perdeu a graça. Deu. Falei educamente: Olha, não precisa, sério, já está ótimo. Mesmo. Tenho que ir. Ela insistiu, dizendo que ainda nem tinha passado o hidratante, mas não dei chance. Aquilo já estava bizarro demais, já não tinha mais graça alguma, estava me sentindo fisicamente mal. A sensação de pavor foi tomando conta de mim que fiquei desesperado para pagar e sumir daquele lugar. Larguei os trinta pilas e fui embora. Nem agradeci a Paty nem a loira dourada. Ainda na cabine, quando fui vestir a meia pra colocar o tênis, olhei para o meu pé e ele parecia de mulher, de tão bem cortadas que minhas unhas estavam.