Samjaquimsatva






Quem realmente governa o mundo?

Acabei de atender no portão duas moças que de cara percebi serem crentes. Uma morena, com uns 35 anos, mais perto do meu portão e a outra loira, com uns 25 anos, um passo atrás. Ela me perguntou se eu tinha um tempinho. Na hora pensei em negar rapidamente e me livrar da pregação, mas olhei mais uma vez pro rosto das duas e decidi dizer que Sim, claro. A morena começou a falar sobre a crise no governo Lula. Brinquei dizendo que todo mundo só fala disso agora - até os crentes, pensei comigo mesmo. Cortei a fala dela dizendo que Até a Velhinha de Taubaté morreu ontem, vocês conhecem ela? Não conheciam. Expliquei a personagem do Veríssimo e a morena perguntou se tinha sido o Lula quem matou ela. Me aproximei da grade do portão, elas cheiravam um perfume de avó, um cheiro parecido com talco, só que agradável. Ela pegou o governo Lula para falar do Reino de Deus. Tirou a bíblia da bolsa e pôs a procurar um versículo. A loira começou a ficar sem graça com a demora e talvez com a minha paciência e boa vontade silenciosa. Quando a morena achou e começou a ler, eu não consegui prestar atenção em nenhuma das frases que ela disse, agora não lembro de nenhuma palavra sequer. Fiquei totalmente fascinado vendo a loira quieta, olhando pra bíblia e prestando atenção no que sua colega dizia. Ela era igualzinha a Julie Delpy. As bochechas, os cabelos, o loiro. E estava vestida muito bem, com uma saia longa de crente, camisa social de homem pra dentro, linda. Os cabelos naturalmente jogados pra frente, perfeitos em sua leve desarrumação. A morena lia e eu fiquei meio preocupado por não estar ouvindo absolutamente nada do que ela dizia. Em um momento, a Julie Delpy tirou os olhos da bíblia e olhou pra mim. Viu meu rosto inerte olhando pra ela. Pisquei pra sair do leve transe e ela lentamente voltou-se para olhar a bíblia. E muito sutilmente segurou um sorriso de canto da boca. A morena parou de falar e olhou pra mim. Eu queria que ela continuasse lendo mais a bíblia pra mim. Poderia ler mais umas duas páginas inteiras, eu iria ouvir tudo. A morena era muito bonita também. Começou a falar de sua igreja, sobre construir uma família sob as bençãos de Deus e me perguntou se eu estava interessado em me aprofundar no assunto. Fiquei sem saber o que responder. Pensei em dizer que sim, que estava interessado, onde é a igreja de vocês? Pensei em virar crente, em me casar com a loira, em ser trabalhador pra deixar ela apenas cuidando da casa e das crianças. Pra à noite eu chegar e ver televisão de mão dadas com ela. E ir pra cama depois e dormir com ela. Em fazer amor com ela da maneira mais respeitosa e singela, sem emitir som algum, sem falar nada, sem nunca comentar nada, transformando aquilo em nosso maior segredo, em nossa maior expressão de fé e do amor à Deus. Mesmo assim, disse que não me interessava muito. A morena disse que Tudo bem, se eu te desse um folhetinho você leria? Disse que claro, com prazer. Ela tirou um da bolsa e me deu. Abri pra mostrar interesse e meus olhos ironicamente cairam nas palavras: "Vai-te, Satanás!" E elas foram. A loira ainda olhou pra mim antes de dar um passo pra direita e sair do meu campo de visão. "Com todo respeito...", falei chamando elas de novo, "... vocês são muito bonitas". Elas ficaram muito sem graça, com um sorriso tímido nos lábidos, graciosamente constrangidas e me disseram um rápido Obrigada. As duas. Entrei pra casa, procurei no folheto mas nele não tinha o endereço da igreja delas.