Samjaquimsatva






Cego do olho

Cortando o centro da cidade, por questão de segundos evitei que um cego batesse de cara em um poste de ferro fincado bem no meio da calçada estreita. Quase não parei de andar enquanto segurei e desviei ele. Que agradeceu e continuou andando.

Dois quarteirões depois, uma amiga da faculdade encosta o carro do meu lado e me chama pelo sobrenome. Ela viu a cena e me elogiou pela atitude, achou bonito. Ofereceu carona e convidei pra almoçar, mas já tinha comida esperando por ela.

No meio da refeição, olho através de dois casais e vejo o cego sentado sozinho numa mesa de dois lugares, de frente para o canto da parede. Observo ele comer. Ia espetando o garfo nas saladas e levava até a boa. Muito lentamente repetia esse movimento. Ninguém notou ele alí. Passei a comer mais devagar. Fiquei curioso em observar ele.

Repeti três vezes e não pesou na barriga a comida do restaurante vegetariano. Ele agora comia esfirras de espinafre com queijo, purê de batatas, legumes cozidos, arroz, de tudo. Quando espetou a casca dura da borda da esfirra, pegou ela com a mão e deu uma mordida. Comi a sobremesa. Quando ele acabou, um garçom conversou com ele e voltou com uma taça de salada de fruta e outra de gelatina colorida.

Já tinha terminado e fiquei descansado alí. Ele acabou e ficou descansando também. Sentado com a coluna ereta. Usava roupa muito simples, mas estava muito bem arrumado, camiseta pra dentro, tudo muito bem ajustado. Tênis com laços bem firmes e largos, quase encostando no chão. Ele acabou de comer e ficou quieto, com as mãos cruzadas na mesa. Parecia rezar.

De repente, assobiou. Por poucos segundos e voltou a ficar em silêncio. Prestei atenção, assobiou de novo e consegui ouvir. O som veio na forma de uma paz avassaladora. O que contrastou com o resto das pessoas no restaurante, que agora pareciam apressadas e inquietas. Vi um adolescente mordendo uma esfirra ainda na fila da comida. A bengala do cego estava dobrada no canto da mesa. Vendo sua imagem e ouvindo seus curtos assobios, fiquei com os olhos mais hidratados que o comum. Não de pena ou compaixão por ele. Não sentia nada disso. Mas por causa paz e calma que ele emanava. Na verdade, acho que não consegui absorver com naturalidade como ele era capaz de parecer tão bem e tão plenamente feliz sendo daquele jeito.

Levantei e fui pagar a conta. Ele ficou lá mais um pouco, descansando. Fiquei pensando se tivesse deixado ele bater de cara no poste de ferro fincado bem no meio daquela calçada estreita. Se o nariz dele chegaria a sangrar.