Não, não é impossível de ler. O começo é bastante difícil, mas só até Leopold Bloom aparecer. Antes disso, dá vontade de desistir mesmo. Dá pra acreditar que é mesmo impossível. Não é. Fui lendo com calma, sem pressa, só quando estava com vontade, e quando fui ver já estava perto do final. Li a tradução nova da sorridente Bernardina da Silveira Pinheiro. Na introdução ela conta que procurou traduzir o livro sendo fiel à linguagem coloqual de James Joyce. Que, embora seja lexicamente muito rica, com uma enorme diversidade de estilos, musicalidade e vocabulário, é convidativa e está ao alcance do leitor. Ela quis que um maior número de leitores entrassem em contato com a obra de Joyce, e que fosse uma leitura divertida. Conseguiu com brilhantismo.
Contando as notas finais, o livro tem quase 900 páginas de letras miúdas. Por causa do tamanho, é aconselhável que cada sessão de leitura dure mais de 30 minutos, para que o fluxo de cada momento não fique perdido e a leitura muito fragmentada. Só depois desse tempo lendo que eu conseguia baixar a dispersão da mente e engatar no fluxo da escrita de Joyce. É um bom exercício de concentração perceber a poeira mental decantando. Requer energia, mas é questão de costume. É bom às vezes não ter uma mente que mais se parece com um macaco que fica pulando de galho em galho. É bastante útil também o resumo de cada capítulo que vem junto com as notas finais. São sempre dois parágrafos, um resumindo o capítulo análogo d’A Odisséia e o outro o capítulo do Ulisses. É bom em caso de se perder o contexto amplo estando num labirinto de divagações e detalhamento psicológico de algum personagem ou situação.
Ulisses de Joyce é a paródia moderna de A Odisséia de Homero, pra quem não sabia, como eu. A Odisséia narra a volta do herói Odisseu (Ulisses) de volta à patria depois da guerra contra Tróia. Penélope, mulher de Odisseu, apesar de assediada por inúmeros pretendentes, espera fielmente há mais de 10 anos pela volta do marido. E Telêmaco, o filho, saí a procura do pai.
Joyce parece ter o domínio completo de todos os estilos literários, pouco reconhecível pra quem não é entendedor do assunto, e utiliza deles para narrar o fluxo de consciência e o diálogo interior de seus personagens, fazendo assim uma descrição psicológica das mais ricas imagináveis. E essa criatividade-precipício sem fim de Joyce naturalmente remete o leitor a uma experiência esquizofrênica. Porque é muita coisa. O que instigou até Joyce, motivo que o fez procurar o psicanalista Carl Jung. Conversando sobre sua filha, que era esquizofrênica, Joyce comentou que as crises dela pareciam-se com seu processo de criação literária. Jung concordou com Joyce, mas esclareceu - “No oceano em que você nada, ela se afoga”.
Os capítulos que mais gostei foram o Oito, quando Bloom vai almoçar e o cheiros das comidas na rua o deixam enjoado. O Quinze, no mergulho nos delírios e fantasias de Bloom na zona dos bordeis de Dublin, à procura de seu filho Stephen. O Dezessete, capítulo todo feito em perguntas e respostas, loucura completa de descrições. E o último, Dezoito, o monólogo excitante de Molly Bloom. São 50 páginas com uma frase, com os pensamentos da carne que mostram a personalidade de Molly não apenas como uma mulher infiel, desonesta e essencialmente promíscua, mas como alguém que se sente sozinha, sente falta de carinho, e que ao invés de se retrair nisso, prefere dizer um grande Sim com relação a vida.
E justo nesse final começa a ficar muito claro que todas aquelas páginas dizem apenas sobre o único dia 16 de junho de 1904. É desconcertante e desafia a lógica. E a sacanagem de Joyce no final é fazer com que você fique querendo que o livro tivesse pelo menos umas trinta páginas a mais. Mas ele fecha no auge e deixa a gente lá ainda cheio de fôlego e interesse. Já estou pesquisando qual o guia de leitura do Ulisses que compro. Uma segunda leitura parece ser muito melhor.