Ouvi falar de Georges Bataille uns quatro anos atrás. Tinha a certeza de que não queria e nem deveria lê-lo. Reconhecia a grande defasagem de experiências que impediriam a comunicação entre suas idéias e o que eu entenderia. Olhando por cima, sem compreender direito, achava apenas cru e violento demais. Na época eu estava fissurado em livros de budismo tibetano de uma inteligência revolucionária, que me parecia o oposto do pensamento de Bataille. Vendo agora, é e não é ao mesmo tempo. Ambos caminham numa busca com a mesma direção. Mês passado, Bataille me veio à mente com força, junto com a sensação de que era o momento exato que eu deveria entrar em contato com sua obra.
Li seus dois livros mais famosos, “A História do Olho” (1928) e “Eroticism” (1957). Respectivamente da Cosac Naify e Penguim Classics, já que pois a tradução do "Erotismo" é fraquinha. Se nunca tivesse ouvido falar de Bataille e se não houvesse os posfácios de Roland Barthes e Julio Cortázar, talvez eu não gostasse nem um pouco de “A História do Olho”. Reconheceria seu poder, mas não seria minha praia. A crueza do erotismo retratado nele é estampada na primeira página. E só piora. Logo de cara se repudia a linguagem, a história e o conteúdo. Mas depois de ler, você pára e percebe com desconcerto como aquilo realmente toca a fundo questões sobre o erotismo.
Entre o repudiar e o aceitar, ficamos sem entender por que os acontecimentos do livro nos perturbam e atraem tanto. Uma atração e fascínio pela repulsa total. Por que aquilo tudo que todos naturalmente rejeitam diz tanto sobre a gente? É esse aspecto de difícil compreensão que dá o caráter de obra-prima do livro. O estupro e assassinato do padre é de um surrealismo demolidor de tão violento. Algo que o diretor de cinema Gaspar Noé do filme “Irreversível” tremeria nas bases em pensar em adaptar. E ainda ouvi dizer que “Os 120 Dias de Sodoma” de Marquês de Sade é bem pior.
Na seqüência de “A História do Olho” peguei o “Eroticism”. Agora, a violência escatológica da ficção ganha a dimensão de um ensaio onde Bataille esmiuça, com uma linguagem tenta ser clara e compreensível ao máximo, os componentes que constrõem a experiência do erotismo. Em especial suas ligações com as experiências mais fortes da vida, com a morte. É atordoante a inteligência de Bataille. É muito empolgante ir lendo e reconhecendo as conexões que ele faz. Mas como? ficava sempre se queixo caído. Para dar uma idéia, alguns dos capítulos tratam a fundo questões como assassinato, guerra, sacrifício, santidade, solidão, trangressão no casamento, transgressão da orgia, prostituição, tabus, etc. Tudo para explicar o erotismo. E tudo faz sentido.
O pensamento de Bataille tem como base que o homem é essencialmente um ser solitário. Um ser de experiências descontínuas, separadas, em todos as circunstância o homem é e continuará só. Por isso, esse homem vive em busca de experiências que dão a sensação inversa, de continuidade, união, dissolução, para que ao menos por algum momento, ele se esqueça do horror de sua solidão irremediável. O interessante é como ele mostra essa movimentação interna do homem nas mais diferenças expressões externas. Pode se encontrar e criar contato com isso tanto na orgia quanto numa experiência mística religiosa. Bataille vê na quebra de tabus uma das principais vias para experimentar essa dissolução. E sempre relaciona sexo à morte (dissolução). "O sentido do erotismo é a fusão, a supressão dos limites. O sentido último do erotismo é morte".
É complicado falar sobre o livro. A inteligência de Bataille é tão vasta que cobre todos os principais aspectos da vida humana. Quando a linguagem fica bastante abstrata e complexa, dá pra perceber o quanto é grandioso o que ele está tentando transmitir. E por mais que se estude o livro, é quase impossível captar tudo. Às vezes parece que esse não entender é uma das mensagens. Se você compreender por que não consegue captar tudo, você entendeu um pouco o que ele tentou dizer.
Bataille parece ter um terceiro olho místico que vê os dois lados - ou mais - da mesma experiência. Uma frase interessante que ilustra isso é a seguinte: “A contradição do homem é que choramos diante da morte, mas quando rimos, não sabemos que estamos rindo da morte”. A linguagem de Bataille é importantíssima para o livro ser agradável e digerível. Talvez por ter sido um bibliotecário, consegue falar com propriedade sobre áreas como antropologia, sociologia e filosofia sem ter os vícios de linguagem e limitações dos acadêmicos dessas disciplinas.
Apesar das conexões nada usuais que causam estranhamento pelo livro todo, “Eroticism” é de longe o melhor livro que já li sobre as relações e o espírito humano. No fundo, há uma bondade muito grande na tentativa de Bataille tentar decifrar isso. Agora consegui entender que todo seu aspecto violento, transgressor e exagerado sempre tem como foco algo muito, mas muito amplo e bonito. De uma grandeza incomensurável que talvez possamos chamar de Deus. Ou de vida. Ou morte.