[...] Mas ser contra ideologias utópicas não significa abrir mão do senso crítico e, digamos, cair no conto dito 'neoliberal' de que o planeta encontrou o regime adequado para o benefício gradual de todos. E por quê? Porque a crença num conjunto de regras básicas que, adotado por todos, trará uma estabilidade mundial duradoura, o 'fim da história', comete exatamente o mesmo equívoco. Em outro sentido, ideologias nunca deixam de existir; há sempre um corpo de valores hegemônico numa sociedade, que precisa ser contestado de forma permanente. O consumismo e o conformismo de nossos tempos são uma forma de ideologia, até mesmo de utopia, ao embutir a noção de que, por exemplo, bens materiais são fins, e não meios. Então não caia nessa de que vivemos tempos sem utopia nem ideologia. A hipervalorização das aparências prejudica o convívio social ao desprezar o conhecimento e iludir os indivíduos com promessas fáceis de aceitação; endossa sua inclinação infantil ao escape, sua incapacidade de ver a realidade em suas nuances e ironias. [...] Quanto a sugestões de leituras, eu poderia citar muitos pensadores que perceberam o risco do pensamento 'totalizante', que tudo quer explicar e prever - autores de Montaigne a Karl Popper, passando por Nietzsche e mesmo Freud. Mas o curioso é como os artistas sempre tiveram uma visão mais aguda desse problema. De Shakespeare à Doris Lessing de O Sonho mais Doce, passando por nosso Machado de Assis, por Cervantes ou Thomas Mann - ou Rembrandt, Picasso e Hitchcock, Mozart, Beethoven e Tom Jobim -, o que temos é uma compreensão de que a natureza humana não pode ser 'corrigida' por um punhado de boas intenções abstratas. Há quem considere que escrever sobre as artes e a idéias é menos importante do que atacar o político mentiroso do dia, mas eis o que deveria ser o motivo mais profundo para nos determos na produção cultural do passado e do presente: testemunhar por ela o vigor libertário das faculdades humanas diante das ilusões de completude.
Se às vezes acho o Daniel Piza meio xarope, às vezes o acho brilhante. Como no trecho acima, da sua coluna "Sinopse" no Estadão de domingo retrasado. É uma resposta a um leitor que o questiona por não acreditar na necessidade da utopia e ideologia em tempos em que a "nossa contemporaneidade está marcada pelo fim de ambas". Ele responde muito bem e ainda aponta sobre a dificuldade que significa ser engajado nos dias de hoje; e como a arte é essencial para mantermos a consciência de que a vida é algo que sempre vai além de nossas idéias sobre ela. A criativa liberdade de se conhecer aprisionado.