Cara de artista
O que estraga tudo é a cara de artista. Já reparou que tá todo mundo com cara de artista? É cada vez mais freqüente ser encarado como um estranho estando só de camiseta, tênis e calça básica. Logo a minha geração, que nasceu dentro da calça jeans, anda sofrendo a angústia reversa de ser simples de mais. Hoje em dia, ou você tem cara de artista, ou vai em festas psy, ou vai ao trabalho como se fosse pra uma entrevista de emprego, ou é emo. Se estiver indeciso, o melhor é ser isso tudo ao mesmo tempo. A coerência anda em baixa, o que vale é comprar roupa rasgada por duzentos contos e fazer cara de estragado. É cool ser estragado. O que parece o ápice da liberdade de expresão, na verdade, anda broxando a vida da gente.
Há pouco tempo atrás, você tinha que conquistar o direito de ser excêntrico. O que pode parecer excludente na verdade é um prêmio ao esforço ou à aptidão nata. Não era todo mundo que poderia andar por aí com as roupas e os bigodes do Salvador Dalí ou com o terno amarrotado de Sartre. Pra não virar piada era preciso, antes de tudo, ter talento. Hoje, primeiro se dá um jeito no visual, depois se tenta arrumar talento em alguma área, nem que seja em tirar auto-retratos com cara de gostoso e publicar no Orkut com uma mensagem "Só add quem conheço".
A cara de artista não anda só broxando a vida, mas também sepultando tradições até que bacanas. O cabeleireiro, por exemplo, está sumindo. Hoje ele se chama Hair Stylist. Nos salões, você pode dar um tapa na juba, comprar uma camiseta caríssima e comer uns bolinhos. Salão de beleza virou lugar pra se estar in. Não à toa, ta cheio de gente com o cabelo parecido com um brioche por aí. É o risco que se corre.
Talvez essa geração saiba curtir a vida com menos grilos, com menos preconceitos, mais aberta, menos muros. Talvez essa geração seja até melhor que a minha, se é que existe isso. Talvez. Mas, ao mesmo tempo, admitindo-se todas as personalidades, admite-se também que as personalidades se diluem. É a geração Ctrl C + Ctrl V - de manhã você vai ao colégio de camiseta do Iron, de tarde namora uma garota de 13 anos ao som de um emo qualquer e de noite toma uma bala pra curtir a festa psy. Não cobro coerência, mas assim também já beira à falta de cara.
Adapta-se conforme a música, acerta-se a luz conforme o ambiente, e vamos embora por que quem fica de fora está, literalmente, por fora. Talvez por isso a música eletrônica pra dançar ocupe cada vez mais corações e mentes. Hoje em dia, há menos pessoas no mundo dispostas a ver outro alguém no palco. A onda é se arrumar de um jeito "diferente", tomar bala e dançar até de manhã pra tentar ser notado. Acho que anda todo mundo com síndrome de querer SER o artista, e não mais VER a arte. O que atrapalha é, o que atrapalha, é sempre a cara de ... deixa pra lá.