Você já chutou uma velhinha hoje?
Uma das coisas que mais me comove no Brasil é nossa noção cívica. Cívica não no sentido de amor à pátria, à bandeira, à Brasília (não somos vira-latas por acaso, afinal). Cívica no sentido de civilização, de civilidade, respeito. Nada como uma banda rápida na Feira do Livro deste ano pra constatar, mais uma vez, que somos a pior das raças no quesito "estou sozinho no mundo, e você, quem pensa que é".
Há semanas que eu insistia com todo mundo que a exposição "Somos a criação popular brasileira" era obrigatória pra qualquer um que visitasse Porto Alegre. Mostra só com artistas plásticos totalmente desconhecidos no Brasil e que, obviamente, os gringos adoram e pagam caro. Estamos lá.
A exposição em si anda uma maravilha quando avistamos uma fila. Uma fila ainda incipiente, tímida. Estávamos no meio do salão superior do Santander Cultural, ainda nem tínhamos dado a volta completa.
Pra nossa surpresa, o que mais parecia uma reunião de amigos virou uma fila do INSS no dia 5. A coisa ganhou proporções descomedidas para o espaço, tanto que não nos permitiu ver um painel de colagens que parecia ser muito legal, atrás das cabeças das pessoas.
Pra passar pro lado de lá do andar precisávamos driblar a fila, tarefa já ingrata - o aperto era grande. Desafiamos as pessoas, vamos nessa que a gente quer ver aquelas mulheres rústicas e os painéis em madeira. Todas nos olham como se quiséssemos roubar seus lugares. Pânico nos olhos. "Esse lugar é meu", me encara uma menina de cabelos roxos. Andamos mais um pouco, espremidos, tentando nos desvencilhar. "Eu cheguei primeiro", se amedronta outra, baixa. Parecem crianças mimadas em volta de um doce minúsculo, quase inexistente.
Empurra de leve, bandeira branca, a gente só quer ver aquelas coisas ali que ninguém gosta, dá licença por favor que eu to por fora, calma que eu não mordo, sua cara é sempre feia assim ou é só por que ta chovendo?, espero SINCERAMENTE que essa fila leve vocês ao inferno e... pára tudo. Uma senhora de cabelos brancos com ar de vovó de todo mundo quer passar. Ninguém aí, nem bola. Ela tenta, se esgueira, enfrenta a mesma dificuldade que nós. Quando chega no início da fila pra tomar seu lugar de direito ("temos uma Lei do Idoso no Brasil pra nos forçar a deixar gente idosa a ficar com os melhores lugares, droga") uma super educada menina olha pra ela candidamente e comunica: "o final da fila é lá atrás".
Constrangida, calada, resignada, com pena a senhora se afasta. Encara a multidão e se acomoda em pé "no final da fila", como mandou a garota. Acompanhamos a cena revoltados, fosse eu um cara sem noção já teria partido pra porrada. No caso, umas palmadas na bunda pela mal criação.
Como também fomos para o final da fila (porque tava todo mundo de costas pras obras de arte do andar) acompanhamos a vovó. Lá, ela olha para outra senhora um pouco menos idosa - mas que certamente deveria estar gozando dos mesmos direitos - e comenta: "o pior é que ela foi minha aluna de Inglês". Peraí. O pior é que ela foi minha aluna de Inglês? O pior é que ela foi MINHA ALUNA de Inglês? O pior é que ela FOI MINHA ALUNA de Inglês? Se existisse, deus teria feito um raio cair na cabeça da garota da fila.
Cara, a menina foi aluna da vovó, olhou docemente pra ela como quem recorda de um momento de sua adolescência e mandou ela pro final da fila? Deveria existir punição sumária pra ex-alunas de Inglês que mandam seus ex-professores pro final da fila.
Nos olhamos, nos indignamos juntos, e como tenho o péssimo habito de tentar consertar os buracos no teto do mundo, olho pra uma das segurança que está a dois metros da vovó e falo "olha, tem uma senhora idosa aqui no final da fila, é contra a lei, hein?" (ameacei com a lei, agora vai). "Pois é, mas eu não posso fazer nada..." Ela não pode fazer nada. Tentei convencê-la de, ao menos, dar um toque pro pessoal da organização, e ela prontamente me apontou quem eram o 'culpados'. Mas insistiu que não era o seu trabalho, como quem diz "não sou pago pra cuidar de velhotas no final da fila".
Nos olhamos novamente e aí pensei que hoje não vou estragar meu dia, vamos lá garoto, contenha-se, o mundo é isso mesmo, não foi você que fez a luz, os animais, o céu e a terra. Ok, vamos nessa que - olha! - chegamos nos painéis de madeira que eram realmente maravilhosos. Afinal é isso mesmo que a gente veio fazer aqui, cada um com seus problemas, vem cá me dar um beijo e os outros que se fodam.
Só que, realmente, não deu pra engolir. Demos a volta no andar pelo outro lado e não me contive. "Sério, a gente tem que fazer alguma coisa, simular um suicídio, sei lá. Quem sabe as pessoas prestam atenção na gente e a vovó fura a fila". Pára, Lê. "Vou lá falar com o pessoal da organização". Volta tudo, caminhamos até lá, um cara de cadeira de rodas quer passar, chama a moça, agora vai. "Oi, tudo bem? (sorrisos) Tem duas senhoras lá no final da fila, uma delas tem mais de 70 anos com certeza". Ela vai dizer, ela vai dizer, ela vai pegar a vovó, ela vai... "Eu sei, a gente já está abrindo, ta?".
A gente já está abrindo, ta?
A gente já está abrindo, ta?
A gente já está abrindo, TA?
Foi isso o que ela disse.
E aquela frase ficou martelando na minha cabeça.
Diabos, eu não quero saber se vocês estão abrindo, isso não muda o fato de ela estar no final da fila! Sabe aquela mentira contada tantas vezes que se torna verdade? Acho que é isso, o errado sou eu, palmas, vocês venceram.
***
Quando voltamos de Buenos Aires todos perguntavam se tínhamos sido mal recebidos, comentavam a empáfia dos portenhos, a afamada arrogância argentina. Os argentinos só não estão na nossa frente no futebol, por que de resto eles nos dão um banho - de educação, sobretudo.