#37 - Tomar café da manhã sentado em cima do balcão da cozinha.
Sempre gosto de jantar lendo alguma coisa aleatória e completamente sem relevância para o momento. Uma distração simples que encontro em panfletos anunciando novos empreendimentos imobiliários no bairro, uma página do caderno de empregos da Folha de duas semanas atrás ou, como é o caso na grande maioria das noites, o catálogo de promoções do Zaffari. É, digamos, o meu instante poético do dia, me deleitando ao virar a página dos queijos e fiambres.
Como ontem não poderia ser diferente comecei a procurar pela pilha de couché colorido que chega na caixa de correspondência todo dia. De início fiquei faceiro por receber um álbum da boa e velha Panini, alegria dos recreios do primário em suas partidas de bafo batendo figurinha com um 5x7 do Goycochea. O livro ilustrado Hot Car 2006 pedia para ser folheado com todo carinho da juventude entre uma colherada de canja e outra, lembrando das velhas coleções de Quatro Rodas e as maravilhas de uma Lamborghini Diablo amarela. Todo esse saudosismo me deixou desprevenido e o que veio em seguida foi um estado de total perplexidade ao passar por aquelas páginas lustrosas.
HotCar, para meu espanto, trata-se de um álbum de figurinhas de tunagem, alargamento de carroceria e motores envenenados. Todas auto-colantes, obviamente, pois há muito foi-se a época em que o guri saía de casa com um tubo de Tenaz no bolso. Entre cromos mostrando rodas de liga leve, sistemas de som e aplicações de néon azul debaixo de um Fusca, as legendas contribuem para deixar tudo mais assustador. Descrições como "Malvada! Mercedes SLR ficou bandida com as rodas exclusivas e o filme escurão" ou "Celta criminoso tem visual diferentão, com pintura fosca e grade cromadona na frente" com certeza deixarão a Grande Porto Alegre em alvoroço.
Terminei minha canja em silêncio e resolvi deixar o álbum de lado. Não quero nem pensar no que vai ser o mundo daqui a quinze anos quando essa gurizada crescer. Me deixem com a página de carnes ali do supermercado que por enquanto ainda estou contente.
Ouço boatos de que nunca saí de Porto Alegre.
Segundo consta no falatório popular, Gabriel Pillar passou os últimos meses em estado contemplativo na Silva Jardim, sentado à sombra de um bouganville. Tomava o eventual suco de caju, lia um pouco de Borges aqui e ali, mas tentava mantar o isolamento completo, inclusive forjando fotos suas no estrangeiro para evitar quaisquer tentativas de contato. Para todos os efeitos isso é tudo verdade, e a única coisa que precisa ser dita é que saio desse retiro completamente em chamas.
Acordei hoje com um Prestígio na mão.