Ta no ar a entrevista que fiz pra Trip com o John "Maddog" Hall, que é presidente da Linux International e ícone do movimento do software livre - praticamente a figura do Papai Noel com um pinguin bordado no peito. Falei com ele durante a sexta edição do Fórum Internacional do Software Livre, que aconteceu entre 1 e 4 de junho ali na PUC.
Além da entrevista pra revista, o encontro rendeu um perfil pra cadeira de redação da Fabico. Segue no "continue lendo" pra não ocupar todo o espaço aqui.
A foto é do Ado Henrichs.
Código aberto de um cachorro loucoNo meio da multidão que circula pelo prédio de eventos da PUC/RS uma figura sorridente e rechonchuda se destaca. Talvez pela grande barba branca, ou pelo grupo que se concentra à sua volta. Praticamente um veterano em meio a uma horda de jovens programadores, distribui autógrafos e posa para fotos. Uma depois da outra, depois da outra, depois da outra... Levanto o braço pra chamar sua atenção e grito “Maddog”. Ele se vira e abre mais um sorriso. Acha que quero tirar um retrato ao seu lado. No peito um pingüim bordado, carinhosamente chamado de Tux pelos iniciados, indica sua relação com o Linux. Mas esse não é apenas mais um usuário.
Jon Hall, ou simplesmente Maddog, cachorro louco, é um ícone do movimento do software livre. Revelo minhas intenções - uma entrevista para uma revista de São Paulo -, e combinamos um encontro no outro dia, “ou quem sabe um chope hoje no final da tarde”, brinca. Estou na sexta edição do Fórum Internacional do Software Livre em Porto Alegre, evento que ao longo dos anos se tornou marco para a comunidade criada em torno dos programas de código aberto.
Caminho entre estandes de grandes empresas como SUN e HP e vejo pequenos grupos espalhados pelo chão. Jovens em sua maioria, cada qual com seu laptop, conversam sobre sistemas operacionais, digitam freneticamente códigos incompreensíveis para o leigo transeunte e abraçam pingüins de pelúcia. Coca-cola, muita coca-cola, é a bebida da vez para esses neo-hippies.
Falar de Maddog sem falar sobre o software livre e sua comunidade é algo muito difícil. Sendo um dos grandes responsáveis pela disseminação do sistema Linux ao redor do mundo, não tem como dissociar a pessoa do seu trabalho. Maddog é presidente da organização Linux International e parece viver para isso.
Voltei no outro dia com cinqüenta perguntas debaixo do braço e o fotógrafo da revista a tiracolo. Talvez um punhado a mais de motivação pessoal em conhecer a figura. Era sabido através de amigos que essa seria uma entrevista difícil de conduzir. “Quando começa, ele não pára de falar”, diziam. De toda forma fui com boas expectativas.
Já no caminho para a sessão de fotos sua predileção pela prolixidade ficou clara. Ado, o fotógrafo, levou um belo de um tijolo ao tentar puxar papo. Diante de praia, mulheres e caipirinha - aquela bateria de perguntas clássicas feitas a qualquer estrangeiro em solo brasileiro -, Maddog diz que havia estado em Florianópolis na semana anterior, mas logo começa a dissertar sobre o parco desenvolvimento de software na Índia em razão da falta de boas redes de comunicação. Era verdade, ele não parava nunca.
Enquanto montavam os equipamentos para o ensaio, Maddog se virou para mim e disse: “Eu não vou responder a tua primeira pergunta. Todo mundo a faz, e estou cansado de respondê-la.” Por instantes pensei em ludibriá-lo, começar perguntando sobre os avanços do software livre na África do Sul para depois pegá-lo desprevenido, mas as palavras “Por que Maddog?” simplesmente saíram da minha boca. Rosnou, mas respondeu carinhosamente.
“Quando eu tinha 27 anos eu não tinha controle, e permitia que o meu temperamento fosse visto e afetasse outras pessoas. No final eu me dei conta que a única coisa que eu perdi com isso foi a mim mesmo. Hoje o temperamento e a raiva ainda estão lá, mas eu aprendi a guardar isso dentro de mim. O nome, bem, o nome acabou ficando.”
De toda forma garante que o nome, assim como a sua barba, é algo prático. “Se eu aparasse a minha barba, ou cortasse o meu cabelo, provavelmente menos pessoas iriam se lembrar de mim.” Mas Maddog não precisa nem de um nem de outro para ser reconhecido - já é um pop star no mundo Linux. Lembrando da tarde anterior quando o encontrei em meio a inúmeros fãs, pergunto sobre o estrelato.
“Eu sei, e eu odeio isso. Eu paro porque isso faz as pessoas se sentirem bem. E eu me sentiria um canalha se eu dissesse não. Se eu tiver tempo eu paro para tirar uma foto, mas algumas vezes eu simplesmente não tenho tempo. Estou tentando ir de um lugar a outro e 52 pessoas paradas na minha frente querem tirar uma foto.”
Ironicamente preciso interrompê-lo. Está tudo pronto para tirar o retrato.
Placas de metal ao fundo de alguma forma remetem à tecnologia; o filme fotográfico balanceado para tungstênio modifica as cores e realça a barba branca com tons de ficção-científica. Diante da câmera, posa de super-homem, dá gargalhadas, flexiona os seus braços e faz cara de cachorro louco. No alto dos seus 54 anos, diz que qualquer um que chamasse seu nome na rua esperaria ver alguém com uma coleira de pregos no pescoço. Estamos todos torrando ao sol em pleno outono.
Passado alguns minutos, voltamos pra 1969. Na época apenas Jon, formou-se em comércio e engenharia pela Drexel University, na Philadelphia, Estados Unidos, e posteriormente recebeu título de mestre em ciência da computação pela RPI, em Nova Iorque. O contato com computadores vem desde a adolescência, e lembra com saudosismo dos programas gravados em fitas de papel. No princípio, todo o software era livre.
“Eu me acostumei com esse conceito de software livre mesmo que a gente não chamasse ele assim. Todo o software que existia geralmente vinha com o código fonte, então se quisessem fazer dez cópias e colocar em dez computadores poderiam. Não havia um custo por computador, e muito disso era porque computadores eram muito caros naquela época. O conceito de que as pessoas pudessem ter quinhentos ou mil computadores não passava pela cabeça de muita gente.”
Maddog trabalhou programando mainframes IBM para uma empresa de seguros e inclusive passou algum tempo nos laboratórios da Bell, mas foi durante sua estada na Digital Equipment Corporation que conheceu o projeto de Linus Thorvalds. “Can I help you”, diz imitando o sotaque nórdico do finlandês que criou o Linux. Foi através da DEC que o sistema operacional chegou nos Estados Unidos, “e era uma maravilha usar aquilo”.
“É como tocar o piano. Existem muitos pianos que podes tocar e tirar barulho deles. Existe um piano afinado que podes até tirar música dele. Mas um piano realmente bom, quando tocas nas teclas é uma alegria tocar aquele instrumento. É a coisa mais maravilhosa na Terra, e era assim que eu me sentia sentado na frente desse sistema Linux. Tudo estava no lugar certo, e cada vez que eu tocava o teclado ele retornava exatamente o que tinha que retornar.”
Fala com orgulho que isso é um dos princípios do software livre. Algo que realmente funcione, resolva os seus problemas sem tirar sua liberdade e sem te deixar preso a essa ou aquela corporação. E códigos fechados são um empecilho para esse desenvolvimento. “Precisamos quebrar a lógica de produto e passar a uma economia de serviços”, diz defendendo uma desmercantilização do software. “As empresas que não perceberem isso estão fadadas ao fracasso”.
Diante da afirmação de que a Microsoft seria uma dessas empresas, pergunto se ele acredita que a mega-corporação do Bill Gates é “do mal”. Responde que, na falta de palavra melhor, acredita que sim. “Existem pessoas dentro da Microsoft que estão fazendo coisas desleais nos negócios. Eu não tenho visto nada que me diga que eles não continuam fazendo as mesmas coisas que trouxeram problemas a eles em primeiro lugar.” Estranhamente passamos uns bons segundos nos divertindo com esse fato. A impressão que fica é que no fundo todos nós temos um pouquinho de desafeto e rancor com a Microsoft.
Entre uma conversa e outra descubro que ele faz a sua própria cerveja. Compartilha receitas, faz ajustes aqui e ali para alcançar o sabor ideal, muito como a lógica do próprio software livre. A partir desse ponto desisti de encontrar aspectos na vida de Maddog que não sejam permeados pelos preceitos do que ele prefere chamar de “código livre e aberto”.
Conta, porém, que desde que teve diabetes a cerveja não tem tido muito espaço na vida dele. Hoje coleciona instrumentos musicais automatizados como pianolas – instrumentos que fizeram sucesso nos cabarés do início do século XX. Disse isso não sem antes contar toda a história de embates de direitos autorais na música e relacioná-los com a abertura dos códigos fonte.
“Do doo do doo, i’m the harpsichord man” cantarola inexplicavelmente, quase saltitante. Já faz alguns minutos que estamos conversando a esmo pelos pátios da PUC. Olho para trás e vejo um pequeno grupo de fãs caminhando a poucos passos. Estão concentrados tentando ouvir nossa conversa. Sorriem como se estivessem seguindo um grande profeta. Maddog é um papa da tecnocultura.
Pergunto se estaríamos diante de um futuro não apenas de software livre mas também de cultura livre. “Sim. Livres negócios, livre intercâmbio de idéias”, sustenta com fervor. “A Internet trouxe uma mudança tão radical na maneira com que as pessoas trocam idéias ao redor do mundo que a sociedade precisa tomar uma decisão. É mais importante continuar protegendo um número reduzido de empresas, ou vamos chegar e dizer que nós preferimos ter 6,3 bilhões de cabeças trabalhando juntas para resolver um problema e usar todas as idéias para o bem de todos?”
Em 2002 Maddog escreveu um artigo no Linux Journal contando sua estada no Brasil durante o mesmo FISL. Falava sobre como a sonoridade das palavras em português “software livre” haviam lhe tocado. Hoje, pergunto como isso afetou o seu trabalho. Diz que em suas viagens tem apresentado o país como um exemplo brilhante. “Tenho visto aqui uma progressão ao longo dos anos. Mais e mais pessoas entendendo o software livre, mais e mais envolvimento do governo, e benção do governo. ”
Depois de uma hora e meia de entrevista, diz estar cansado. Resolvemos voltar à sala destinada aos convidados do Fórum, a essa altura repleta de garotas servindo quitutes e beberagens. Maddog garante que está voltando apenas pelo cansaço, ao contrário do que diz o sorriso no seu rosto. Vou embora sabendo que a conversa poderia seguir até o outro dia, enquanto ele fica lá, discutindo os trejeitos do Linux com outros aficionados. Jon Maddog Hall não pára nunca.